A tragédia de Antônio Marcos Pimenta Neves e Sandra Florentino Gomide é daquelas que provocam referências quase inevitáveis às surradas comparações entre ficção e realidade.
Lorde Byron (“a verdade é sempre estranha, mais estranha que a ficção”), Mark Twain (“a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção precisa ter credibilidade”), Borges (“a realidade nunca é provável, mas quando alguém escreve ficção tem que fazê-la maximamente plausível, senão ela será rejeitada pela imaginação do leitor”) foram alguns dos grandes autores que lidaram com essa relação desafiadora.
Pimenta Neves, diretor de Redação de O Estado de S. Paulo, matou, em 20 de agosto de 2000, aos 63 anos de idade, a também jornalista, muito menos conhecida, sua subordinada e quase três décadas mais jovem, Sandra Gomide, com dois tiros pelas costas.
Por coincidência, pouco antes de Pimenta Neves ter obtido, em 3 de setembro deste ano, o direito de cumprir em regime semiaberto o restante de sua pena de 15 anos de prisão (após pouco mais de dois anos e três meses na penitenciária), dois livros foram lançados para relatar o episódio, ambos com a aparente ambição de ser o registro definitivo do drama.
Pimenta Neves – Uma Reportagem [Scortecci, R$ 29,90, 368 págs.], de Luiz Octavio de Lima, e À Queima-Roupa – O Caso Pimenta Neves [Leya, R$ 44,90, 304 págs.], de Vicente Vilardaga, lidam com os fatos de 13 anos atrás de modo relativamente semelhante: uma espécie de exercício do estilo do “novo jornalismo”, em que técnicas ficcionais são usadas para reproduzir acontecimentos reais mais ou menos fielmente, mas com maior profundidade que uma reportagem comum.
Nenhum dos dois pretende se enquadrar no gênero do romance histórico, à maneira, por exemplo, do recente O Sonho do Celta, em que Mario Vargas Llosa reconstrói ficcionalmente a biografia real de Roger Casement, diplomata irlandês que serviu à Grã-Bretanha na virada do século 19, antes de se tornar um líder da luta pela independência de seu país e que foi importante ativista pelos direitos humanos no Congo e Peru.
Os dois livros sobre Pimenta Neves, embora se valham de recursos romanescos, são trabalhos jornalísticos, como os autores declaram.
Lima diz que seu objetivo é “construir uma visão mais aprofundada [do que a do jornalismo periódico] do contexto dos personagens, suas histórias de vida e do que moveu seus atos em um episódio como esse” (pág. 19).
Vilardaga afirma que decidiu “costurar” o relacionamento afetivo do casal, o ambiente profissional da imprensa paulista na virada do século 20 para o 21 (em especial o do já extinto diário Gazeta Mercantil, onde Pimenta Neves, Sandra e Vilardaga trabalharam) e a macroeconomia nacional no período (pág. 356).
Ambos, portanto, trabalham com a realidade e querem contribuir para torná-la mais compreensível para o público (e talvez para si mesmos, afetados, como quase todos os seus colegas jornalistas, especialmente os de São Paulo, que estavam na atividade profissional naquela época).
O problema é que nenhum dos dois livros –apesar de ambos serem trabalhos honestos, resultado de evidente esforço e empenho dos autores, com algumas revelações inéditas e importantes que ajudam a esclarecer detalhes até então nebulosos da história– consegue nem de longe desvendar os mistérios que se passaram com Pimenta e Sandra: suas possíveis motivações, dúvidas, dramas interiores, contradições.
Romance
O escritor que chegou mais perto disso até agora foi o argentino Tomás Eloy Martínez, em O Voo da Rainha, de 2002, um romance (Objetiva, esgotado).
Martínez, também jornalista, morto em 2010, vítima de câncer, dizia que estava construindo os personagens Camargo e Reina, que guardavam semelhanças com Pimenta e Sandra, quando houve o crime real. Brincava que Pimenta (a quem conheceu pessoalmente em Washington, muito antes de 2000) foi quem se inspirou em Camargo, e não o contrário, como todos criam.
O autor oferece uma chave plausível para o comportamento de Camargo-Pimenta, ainda inexplicável e incompreensível para tantos que o conheceram: foi a soberba o que motivou tanto o profissionalismo, motivo da admiração de muitos (não os princípios), quanto a dedicação extremada ao objeto de sua paixão dominadora e obsessiva a Sandra-Reina (não o amor).
Ela, por sua vez, na versão de Martínez, aceitou o assédio e o domínio do chefe-namorado, primeiro por curiosidade, depois por fascínio, muitas vezes por enxergar que ele lhe garantiria progresso e vantagens materiais que de outra forma demoraria demais a obter.
Lima e Vilardaga às vezes (poucas) arranham essas possibilidades, sem convencer ou arrebatar o leitor. Talvez porque se sentissem presos aos cânones do jornalismo, enquanto Martínez estava livre para voar nos céus da ficção.
No entanto Lima e Vilardaga, apesar dos evidentes bons propósitos –que fazem questão de realçar ao enumerar quantas pessoas entrevistaram (“mais de uma centena”, o primeiro; “dezenas”, o segundo)–, não escapam nem mesmo de deslizes factuais, dos quais um pouco de cuidado editorial os teria poupado em benefício próprio e de seus leitores.
Lima, por exemplo, diz (págs. 67-8) que, “no início da década de 1980”, Pimenta conduziu “uma reforma modernizadora” nesta Folha, que, segundo o livro, começou com a “Ilustrada” e depois colocou o jornal “em sintonia com a campanha das Diretas”. Só que Pimenta não voltou a trabalhar na Folha após ter sido seu correspondente em Washington em meados dos anos 1970 e não teve absolutamente nenhuma participação no processo de mudanças pelo qual o jornal passou entre 1978 e 1984.
Já Vilardaga grafa erradamente várias vezes (Rabinovichi) o nome de um importante personagem do drama, o jornalista Moisés Rabinovici, e diz que ele substituiu Pimenta como correspondente em Washington da Folha, jornal para o qual Moisés nunca trabalhou.
Podem ser equívocos menores (há outros), mas eles demonstram um descuido que não deveria ocorrer, em nome da credibilidade de outras afirmações não creditadas a fontes nem devidamente documentadas, embora muitas delas possam ser verdadeiras.
Nos dois livros, mas especialmente no de Lima, parece haver um desejo de descrever Pimenta como pessoa muito mais importante e poderosa do que ele realmente foi (embora ele tenha sido, sem dúvida, um dos mais relevantes jornalistas do país durante quase toda a sua carreira).
Isso talvez indique um desejo de enfatizar desnecessariamente o abismo (etário, físico, intelectual, jornalístico, financeiro, emocional, relacional) que havia entre Pimenta e Sandra, a favor dele ou dela, conforme a ótica ou o caso.
A função que Pimenta desempenhou no Banco Mundial, por exemplo, era muito menos decisiva do que os autores, em especial Lima, descrevem. Ele foi conselheiro para assuntos públicos da vice-presidência da América Latina e do Caribe do Banco entre 1986 e 1995, cargo que evidentemente lhe conferia algum prestígio, mas estava longe de ser tão influente como os dois livros o retratam.
Mesmo como diretor da Gazeta Mercantil e de O Estado de S. Paulo, Pimenta Neves (como todos os que tiveram posição similar) desfrutava de considerável poder, mas não de tanto quanto Lima e Vilardaga sugerem.
Ambas as obras têm bons momentos. O melhor na de Lima é o capítulo 51, “A Imprensa na Berlinda” (págs.255-266), em que se faz uma análise elaborada de como os veículos de comunicação cobriram o assassinato de Sandra por Pimenta assim que ele aconteceu.
Na de Vilardaga, o mais interessante é o insight: “Talvez o caso Pimenta representasse o último suspiro dos chefes de Redação perturbados e autoritários e o fim dos abusos de poder em um ambiente de trabalho com políticas frouxas de recursos humanos” (pág. 356). No mesmo parágrafo, o autor também sugere a tese estimulante de que a ascensão profissional das mulheres nas Redações de São Paulo neste século tenha representado “o fim de uma era machista” da qual Pimenta foi o maior representante.
Mas, infelizmente, Vilardaga não avança nessas boas searas e as deixa quase como notas de rodapé (as quais, aliás, em seu livro, são excessivas e quase todas absolutamente inúteis para a maioria dos leitores potenciais).
Nem Lima nem Vilardaga são capazes, ao final, de esboçar um perfil nem de Pimenta nem de Sandra como seres humanos feitos “de contradições e contrastes, fraquezas e grandezas, já que um homem, como escreveu José Enrique Rodó, é muitos homens’, o que quer dizer que anjos e demônios se misturam na sua personalidade de forma inextricável”, como Mario Vargas Llosa faz com Roger Casement em O Sonho do Celta ou Tomas Eloy Martínez com o próprio casal Pimenta-Sandra recriado como Camargo-Reina em O Voo da Rainha.
Provavelmente porque, como ensinou o poeta Ralph Waldo Emerson, “a ficção revela a verdade que a realidade obscurece”.
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Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista