Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cientista político fala sobre o cenário das manifestações

Poucos dias antes de uma nova manifestação em prol da educação, a ser realizada segunda-feira (7/10) no centro do Rio de Janeiro, com a expectativa da presença de um milhão de pessoas, o blog Dissertação Sobre Divulgação Científica (http://dissertacaosobredc.blogspot.com) conversou com o cientista político Giuseppe Cocco. Em quase uma hora de entrevista, ele falou sobre a efervescência social e política que paira na cidade carioca, os protestos como um todo no país, o papel da esquerda no presente cenário, o protagonismo da comunicação horizontal na Internet, a crise da representatividade política, entre diversos outros assuntos.

Italiano de nascimento, Cocco vive no Brasil desde os anos 90, onde desde então vem militando na política e atuando em movimentos universitários. Embora seja petista, é um crítico do partido. Atualmente, entre as suas atividades, ele é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). É autor, coautor ou editor de 22 livros, entre os quais estão Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, em parceria com Antonio Negri, e MundoBRaz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil.

Confira a entrevista.

Alguns autores pesquisam conceitos como multidão e trabalho imaterial

Como o meio acadêmico tem recepcionado as manifestações que começaram em junho?

Giusppe Cocco – É difícil dizer de um modo geral. Espera-se da academia um discernimento e uma consciência capazes de interpretar adequadamente as dinâmicas sociais e políticas. Muitos professores e pesquisadores ficaram quietos, sem compreender o que estava e ainda está se passando. Há, ainda, os que, também perdidos diante das situações, tentaram acobertar a própria dificuldade de interpretação através da desqualificação dos movimentos. Muitos acusaram os “mascarados” de fascistas, abrindo caminho para segmentos intelectuais da academia e da imprensa condenarem os protestos pelos péssimos serviços públicos.

Quais as principais teorias e autores estão em voga para contribuir no entendimento desse cenário?

G.C. – Todos aqueles autores que estudam as transformações relacionais de trabalho, essencialmente os que conseguiram articular as análises sociológicas das tendências do trabalho – que é difuso, imaterial e em redes – à centralidade dos espaços metropolitanos como ambientes de produção, assim como a políticas de incorporação das diferenças e singularidades sociais. Os principais autores são os que há mais tempo pesquisam conceitos como o de multidão e de trabalho imaterial. Antonio Negri é um dos maiores pensadores do tema. Os acadêmicos que sempre se recusaram a pesquisar tais aspectos como caminhos interessantes e viáveis, buscam desqualificar toda essa ebulição social e política em que vivemos. Na verdade, eles estão aí para saudar a si mesmos e aos seus aportes teóricos e políticos.

A interrupção do paradoxo do lulismo

Do ponto de vista sociopolítico, quais as consequências dessas manifestações?

G.C. – É muito cedo para elaborarmos um mapa geral. Depende dos desdobramentos das relações políticas, produtivas e reprodutivas, enfim, de uma série de fatores. Isso ainda está completamente em aberto. O que é possível perceber é uma difusão geral, incluindo ramificações em diversas cidades, e uma requalificação das lutas, que começou pela mobilidade urbana, mas foi agregando diversas questões. Atualmente, no Rio, por exemplo, está bastante viva a luta por melhorias na educação municipal e estadual, incluindo o respeito e a valorização do professor. Os protestos são diários e têm capacidade para ampliar-se consideravelmente para além da greve, ocupando espaços públicos e resistindo à repressão policial. De fato, não há mais milhões nas ruas, mas os grupos estão mais determinados e consistentes.

Outro impacto é a interrupção do paradoxo do lulismo. Antes, as lutas eram mais generalizadas em prol do crescimento produtivo, sendo que o desenvolvimento era creditado à e instrumentalizado pela direita, em discurso moralista e antilula. A partir de então, as críticas são mais acentuadas tanto contra o ciclo do Lula, quanto aos grandes interesses econômicos. A sociedade passa a querer mais e a acreditar em novas conquistas.

A diferença entre massa e multidão é que a massa é manipulada

As ruas têm demonstrado força suficiente para gerar mudanças estruturais?

G.C. – O próprio movimento é, em si, uma mudança estrutural, que não passa necessariamente por reforma política, por exemplo. Ao contrario, a reforma política poderia ocorrer como reconhecimento e legitimação diante de tamanha insatisfação expressa com tanta vontade. Os nossos representantes tradicionais não estão sabendo o que fazer diante dessas insistências sociais por reconhecimento aos diversos direitos. Há uma nítida incapacidade das instituições dialogarem com os cidadãos, o que fere a democracia. No Rio, a resposta tem sido a repressão. Porém, já há vitórias. Entre elas: a interrupção do processo de gentrificação e higienização ao redor do estádio do Maracanã, como a não demolição do parque aquático Júlio de Lamare e de moradias da região, incluindo a comunidade da Vila Autódromo; e a ampliação do debate sobre a desmilitarização policial e da repressão do Estado. Além disso, uma das principais conquistas do movimento foi fazer com que a Prefeitura revogasse o aumento no valor das tarifas do transporte público, que é muito precário e, essa sim, uma violência contra a população.

Hoje, nacionalmente há uma sensação de que podemos cobrar dos governos, exigir reformas e diálogos, sem o peso da instrumentalização da direita por trás.

Qual é o de risco de manobras manipuladoras sobre tantas pessoas e grupos nas ruas?

G.C. – Interpreto o movimento com um perfil bastante autônomo. Pela primeira vez temos uma situação em que segmentos sociais conseguem se organizar, fazer multidão e expressar toda a angústia pela qual passam. É clara a mensagem de que não aceitam serem governados por grupos manipulados por interesses capitalistas que bancam campanhas eleitorais, como os donos de empresas de ônibus. Se há manipulação, é a da imprensa hegemônica, como as coberturas das reivindicações dos professores no Rio de Janeiro. Muitas vezes, em vez de apresentar o contexto e a realidade da educação na cidade e no estado, criminalizam a postura das categorias. A grande imprensa até tenta se apropriar de algumas bandeiras do movimento, como a violência da polícia nas favelas, exemplificada na figura do Amarildo, mas a influência dessa mídia é mais sobre os aparelhos repressores. A opinião pública, cujo conceito é bastante questionável e relativo, não é mais tão sujeita aos humores da imprensa tradicional. Hoje, há uma multidão de mídias com diversas narrativas e habilidades para contrapor discursos oficiais.

As pessoas não são bobas, e agora desfrutam de mais recursos para se expressar e comunicar. A melhora na economia não criou classes individualistas preocupadas apenas com o incremento da renda, pelo contrário, as pessoas estão exigentes e insatisfeitas com o descompasso político dos poderes constituídos. A diferença entre massa e multidão é exatamente essa: a massa é manipulada. Já a multidão é capaz de definir os princípios e os critérios da mobilização, dentro de padrões democráticos. É isso o que ocorre quando os protestos se voltam, por exemplo, contra os legislativos do Rio, controlados por personagens sem o mínimo interesse na qualidade de vida e no desenvolvimento das cidades e das pessoas.

É preciso abrir para o que “vem de baixo”

A composição das multidões por singularidades dificulta o diálogo para encontrarmos soluções sociopolíticas?

G.C. – Esse é um discurso dos partidos e sindicatos, mas sem qualquer fundamento. Todos sabemos quais são os problemas do transporte, da saúde, da educação. E qual é o projeto dos partidos para mudar o país? Não dá para saber. A capacidade de organização em benefício comum tem sido muito mais evidente nessas manifestações do que nas agremiações partidárias.

Como se dá a crise da representatividade política?

G.C. – A crise não é a da representatividade dos partidos, mas sim da própria representação. A princípio, o PT seria o único partido a assumir a direção em prol das alternativas, mas neste momento entendo que nenhum deles tem condições e lucidez pata tal. É preciso abrir para o que “vem de baixo”, reinventar a relação entre elite e rua, promover projetos públicos com a participação cidadã, incluindo a elaboração dos orçamentos. A crise da representação está ligada à incapacidade da esquerda e da direita se apresentarem com caras diferentes, pois acabam sendo duas caras de uma mesma moeda.

O Brasil tem muitas razões para protestar

Para onde tende a esquerda política brasileira?

G.C. – Hoje, tudo o que há em termos de esquerda passa por fora dos partidos, por fora das dinâmicas eleitorais, mas passa, sim, nas ruas. A esquerda está num dilema. Tanto no Rio, quanto no país, o PSOL pode ter alguns retornos eleitorais por se posicionar em termos de opinião e militância, em parte, fruto da decepção com o PT. Porém, o partido também está em crise, do ponto de vista da representação. Acho até que o deputado estadual Marcelo Freixo tem condições de ganhar as eleições para governador, caso se candidate. No entanto, mais do que os esforços para as eleições, acho que a organização do PSOL orienta-se pelo testemunho e pela fiscalização das condições éticas da política. Já o PT parece estar em situação bem mais crítica do que eu imaginava. Está paralisado, sem sensibilidade política e sem capacidade de diálogo com as organizações civis. Os programas do governo são muito voltados para as grandes ações, os megaeventos, as grandes indústrias. As relações com a Fifa são exemplos claros disso. Ao contrário, deveríamos pensar e discutir aspectos menores, de expressão não tão monumentais. O Brasil que foi às ruas em junho é um Brasil menor, no sentido das megaestruturas.

Há críticas quanto às manifestações entusiasmadas nas redes online, enquanto que numericamente as ruas estão mais vazias, em comparação com os primeiros protestos. Isso é um problema para o movimento?

G.C. – Há aí um efeito ambíguo. Claro, se havia milhões de pessoas e depois esse número é reduzido a milhares, há um sentimento de decepção. Mas, é preciso observar por outro ângulo para melhor entender o contexto. No Rio, por exemplo, os protestos são substanciais, até mesmo com mais de uma mobilização por dia. O fato de esse fenômeno ser bastante ativo na Internet não significa, necessariamente, um esvaziamento das praças públicas. A rede social virtual não é uma opção secundária, é o nosso modo de existência, é uma realidade primordial com interferências imediatas e diretas na nossa vida. A qualquer momento, os ânimos e as constituições de grupos das redes podem se materializar fora de dela. Por incrível que pareça, muitos acadêmicos de direita ainda não perceberam o potencial dessa dimensão, apesar de tudo o que estamos presenciando. A rede é um elemento ainda novo, com a qual o poder não está sabendo lidar, a não ser através de estados de exceção, desrespeitando direitos civis e constitucionais, através da quebra dos sigilos de diversos cidadãos que democraticamente estão se apropriando com legitimidade das redes sociais online. Um exemplo claro foi a criação da Comissão Especial de Investigação dos Atos de Vandalismo, atendendo aos interesses do executivo fluminense.

Quais são os elementos em comum entre as diversas manifestações pelo mundo, desde a Primavera Árabe até o Brasil, passando pela Europa?

G.C. – O que liga todos essas ondas de protestos é a própria crise da representatividade, é o fato de estarmos em um mesmo modelo capitalista, os mesmos ciclos econômicos e a mesma organização do trabalho. Também ressalto o papel ambíguo das classes médias, que são uma nova composição do trabalho imaterial metropolitano, e muitas vezes precisam agir por fora das relações salariais para produzir e conseguir sobreviver. Comparado à Europa, o Brasil tem muito mais razões para protestar. Aqui, são muito maiores o nível de desigualdade social e econômica, o modo de regulação dos pobres e a arrogância dos soberanos na aplicação de medidas e investimentos, muitos dos quais desconexos com os anseios e as necessidades sociais, como a execução do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) nas favelas do Rio.

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Bruno Lara é jornalista, Petrópolis, RJ