Há certos dias, mais do que outros, em que sinto falta Paulo Francis. Na sua ausência, as paredes tomam o lugar dos ouvidos do Francis. Se ele estivesse duas mesas adiante, na redação onde trabalhamos, a semana que passou teria sido coalhada de interjeições. Sobre quem fez e não fez parte da delegação brasileira na Feira de Frankfurt. Sobre a ideia ridícula de censurar biografias no Brasil.
Caetano Veloso é para mim o maior poeta da música popular contemporânea, embora admita que não conheço a música popular de Mianmar ou do Casaquistão. Caetano e Francis aparentemente se detestavam. Por conta disso, teríamos tido mais uma discussão, destas que não terminam em azedume. E eu citaria versos de Caetano que considero superiores aos de Bob Dylan, o menestrel que o New York Times acaba de sugerir como potencial merecedor de um Nobel de Literatura.
“Estou tecnicamente morto,” dizia o Francis, quando destacávamos qualquer filme ou livro que considerava filisteu e irrelevante.
“Acabou o asfalto,” dizia ele, se alguém que considerava precioso, especialmente no jornalismo cultural, era defenestrado pelos arautos de sabe-se lá que reengenharia.
As duas expressões acima caem bem sobre duas controvérsias recentes e uma delas me fez lembrar do Caetano. Ambas têm em comum o autoritarismo e um português pobre de dar dó.
Bolha milionária
Tivemos uma ONG em luta para legalizar um ataque contra um gênero literário e contra a liberdade de expressão, mas exercendo a sua liberdade com xingamentos on-line. A ONG diz representar, não um, mas dois gigantes literários da música contemporânea, Caetano e Chico. Ambos foram censurados, presos e exilados pela ditadura militar. Diante da controvérsia, fizeram silêncio e deixaram que sua porta-voz os cobrisse de ridículo.
Tivemos um escritor best-seller misturando alhos com bugalhos – sucesso comercial com qualidade literária – e nos confundindo sobre a natureza real de seu protesto para não ir a Frankfurt. O que me fez lembrar de uma dúvida: por que Paulo Coelho vende mas não tem prestígio na língua que mais produz best-sellers insípidos? (Bill Clinton e Oprah Winfrey não contam como juízes de gosto literário). Fui pesquisar.
Manuscrito Encontrado em Accra: “Chamar isto de romance é esticar a definição da palavra além do reconhecível.” (Boston Globe). “Vários autores se inserem na própria ficção mas o que faz a versão de Coelho tão insuportável é que evoluiu para administração de branding.” (New Republic) O Zahir: “Há mais profundidade em Obsession de Calvin Klein do que em Zahir”. (The Guardian).
O New York Times nem publica resenhas dos livros recentes. Numa entrevista a um jornal de língua inglesa, o autor acusou os críticos de desprezo por seus leitores. Além de deturpar a noção de critica literária, Coelho ignorou o próprio argumento quando insultou os leitores de James Joyce. Seu Ulysses é repetidamente eleito o melhor romance do século 20, ainda que possa ser ignorado pelos 8 milhões de seguidores de Coelho no Twitter. No ano passado, Coelho disse que Ulysses não valia mais do que um tweet e que ele, sim, é o verdadeiro romancista moderno por fazer o difícil parecer fácil. O autor é astuto demais para não ter calculado a reação.
Vou especular sobre o motivo por trás da declaração que inspirou um editor e jornalista cultural nova-iorquino a bradar em manchete: “A Assombrosa Estupidez de Paulo Coelho”. Ignorado pela mídia que, não tenho dúvida, queria ter conquistado, teria optado pelo falem mal mas, pelo amor de deus, falem de mim. E teve sucesso. Foi intensamente citado em inglês por seu comentário embaraçoso sobre James Joyce que, junto com o insincero argumento para não aparecer na Feira de Frankfurt revela uma visão totalitária de mundo: somos nós que devemos encolher para caber na milionária bolha de platitudes narcisistas do coelhistão.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York