Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Morto não fala

Engano aguardar a morte de escritores, artistas, figuras públicas para escrever biografias sem censura. Sempre restarão os herdeiros para impedir a circulação da obra. Morto não fala, mas herdeiros berram. Por causa deles uma edição inteira da Plêiade sobre o genial argentino Jorge Luis Borges foi bloqueada pela mulher, Maria Kodama, e os leitores nunca poderão ler as 3.000 páginas da correspondência entre o escritor francês Jean Giono com sua amante Blanche Meyer, proibida pelos sucessores.

Se vivo você não é proprietário da sua história, como a do jornalista Pimenta Neves que virou G. M. Camargo no romance de Tomás Eloy Martinez (O Voo da Rainha, Objetiva), quem pode garantir sobre sua biografia depois da morte?

A Fundação Saint-Exupéry, gerida por 12 descendentes do escritor, cobra 40 mil euros por algumas ilustrações do angelical Pequeno Príncipe estampados na caneca ou na camiseta. Nenhuma biografia de Carmem Miranda sobreviverá depois das 600 páginas escritas por Ruy Castro (Carmen, Uma Biografia, Companhia das Letras) no tempo em que a irmã da atriz, Aurora, morreu. “Agora tudo passa pelas sobrinhas e os preços são exorbitantes”, diz Ruy. “É a indústria do herdeiro.” Ruy paga na carne a mania de biografar famosos como Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico) ou Garrincha (Estrela Solitária). As filhas do jogador abriram processo por danos morais e materiais e a Companhia das Letras “reembolsou” a família com 151 mil reais, 13 anos atrás. Com o dramaturgo foi pior: a mesmo editora foi obrigada a incinerar 120 mil livros da coleção dirigida por Ruy. A filha, Sonia Rodrigues, reconhecida por exame de DNA depois da morte de Nelson, que se tornou inventariante do espólio, alegou alterações na obra do pai.

Domínio antecipado

Autor, ator, produtor e diretor de cinema, Amácio Mazaroppi fez testamento para preservar seus 32 filmes. Deixou metade para a mãe, a outra metade para instituições sociais e para quatro de seus funcionários há mais de 40 anos. Legava junto equipamentos cinematográficos e seu estúdio. Morreu em 1981, a mãe, um ano depois, e metade do legado foi parar nas mãos de 20 parentes distantes que brigaram 12 anos pelos lucros, impedindo que os filmes passassem nos cinemas.

Os preciosos diários de Guimarães Rosa do começo da Segunda Guerra Mundial foram vítimas da briga das filhas do primeiro casamento do diplomata contra o filho da segunda mulher, Aracy, anterior ao casamento com o escritor.

A quem pertence a história da vida de Roberto Carlos? E a de Manuel Bandeira?

A família não permitiu que Walter Salles Jr. filmasse, com Fernanda Montenegro e roteiro de Zuenir Ventura, a vida da estilista Zuzu Angel, morta num acidente nunca explicado durante a procura do corpo do filho Stuart, desaparecido na repressão militar.

A família interditou as imagens da morte de Di Cavalcanti quando Glauber Rocha filmou o velório do pintor. Depois foi a vez da mãe de Glauber impedir a veiculação do filme de Silvio Tendler no velório do cineasta.

O inventário de Graciliano Ramos ficou aberto por meio século de brigas de um irmão contra outro, filhos contra a mãe, sobrinhos contra tios.

“Herdeiros?, melhor não tê-los” – Sérgio Augusto parafraseou Vinicius de Moraes no “Poema Enjoadinho”. O direito de imagem está protegido na Constituição, artigo 5º, inciso 10. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas. Mas o mesmo artigo, no parágrafo 2º, garante a livre manifestação intelectual da criação artística, independente de censura ou licença.

A lei garante aos familiares direitos até 70 anos depois da morte. Mas a escritora Nélida Piñon, 20 livros publicados e sem filhos, já antecipou os direitos em 70 anos. “Quero minha obra em domínio público quando eu morrer. Os herdeiros, que inventam uma felicidade que nunca existiu, paralisam a obra de uma vida inteira.”

“Querem dízimo”

Morto não fala. Mas os vivos estão surpreendendo seus fãs. Um pot-pourri da imprensa da semana passada não deixa dúvida de qual é a notícia cultural mais importante dos últimos tempos.

“Compreende-se que Roberto Carlos impeça que livros sobre ele ou a Jovem Guarda sejam publicados. Mas que um artista com a inteligência e a sensibilidade de Djavan engrosse o coro dos defensores das ‘biografias autorizadas’ é no mínimo decepcionante”, declarou o biógrafo de Noel Rosa, João Máximo, que enfrentou problemas com a família do compositor de Vila Isabel (O Globo, 5/10).

Não foi só Djavan. Caetano, Chico, Milton, Gil, Erasmo Carlos entraram na cruzada contra o livre exercício do biografiasmo.

Todos integram o grupo Procure Saber, presidido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne. O grupo exige autorização prévia para comercialização das biografias. Ou seja, daqui para frente só vamos ler bondades sobre os biografados. No meio da polêmica, Paula explica, está o “lucro” que o biógrafo e a editora ganham sobre o biografado. Jorge Mautner defende pagamento de direitos autorais aos biografados. Há muito tempo os entrevistados reivindicam o direito de cobrar pelas entrevistas, e ler as reportagens antes da publicação. O que Paula exigiu quando soube que a matéria ia sair na Folha de S. Paulo o sábado, 5/10. Pedido negado.

“Um monopólio da história, típico de regimes totalitários”, dizia o manifesto divulgado em setembro na Bienal do Rio assinado por autores como Boris Fausto e Ruy Castro. “Biógrafos e jornalistas têm o dever de contar a história do país e de suas personalidades públicas, inclusive expondo suas contradições. Os artistas estão defendendo algo obscurantista, a biografia chapa-branca”, diz Lira Neto, autor de uma tríplice biografia de Getúlio Vargas.

A carta do americano que mora na Holanda, Benjamin Moser, que mereceu chamada de capa na Folha de S.Paulo (9/10, ver aqui), lavou a alma de jornalistas, escritores, biógrafos. Moser é autor de uma polêmica biografia de Clarice Lispector, publicada na Cosac&Naif, Clarice.

“Caro Caetano, nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha para prevenir acidentes na estrada. O slogan rezava: ‘Amigos não deixam amigos bêbados dirigir’. Lembrei disso ao ler suas declarações e as de Paula Lavigne sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado a lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija… Não seja um velho coronel, Caetano, volte para o lado do bem.”

Paula Lavigne não comentou a carta de Moser, mas no Estado de S.Paulo (11/10) chamou de ofensa e cortina de fumaça a crítica do autor da trilogia best-seller da História do Brasil, Laurentino Gomes, na Feira do Livro de Frankfurt, semana passada: “Paula Lavigne afirma querer a verdade, mas é preciso lembrar, também os militares diziam isso nos anos de chumbo para justificar seus atos”.

O biógrafo americano de Che Guevara, Jon Lee Anderson, na capa do “Segundo Caderno” do Globo (9/10), foi na linha de Laurentino: “O Brasil se aproxima da Rússia, China e Irã quando restringe biografias”.

Paula responde pelo grupo de artistas dizendo que os biógrafos é que estão agindo de forma antidemocrática e ditatorial. “É mentira que nós estamos querendo censurar ou proibir alguma coisa, nós só queremos discutir como vamos proteger nossa privacidade”, declarou. Ubiratan Brasil, repórter do Estado de S.Paulo (12/10), cobriu o debate “The Biographical Adventure”, da Feira de Frankfurt, no qual Ruy Castro preveniu: “As próximas gerações correm o risco de não conhecerem detalhes da vida e trajetória de importantes personagens da nossa história por conta do receio desses profissionais, que não pretendem se arriscar em projetos que correm o risco de não acontecer. Podemos ter lacunas porque Roberto Carlos não quer que se fale de sua perna mecânica”.

Foi uma vergonha a polêmica sobre biografias e liberdade de expressão abrir o maior evento editorial do mundo no ano em que o Brasil é o homenageado. Como disse Laurentino Gomes, o Brasil é um dos raros casos de país democrático que impõem dificuldade, censura, ao trabalho dos biógrafos. “Eles querem o dízimo?, eu pago o dízimo, desde que não venham interferir no resultado”, vociferou Ruy Castro (Folha de S.Paulo, 12/10) na mesa sobre biografias no pavilhão do Brasil.

Vivo ou morto

“Figuras públicas não têm vida privada”, lembrou Sérgio Augusto no Estado de S.Paulo (13/10/2013).

A revista Época desta semana publicou cinco páginas com o título “Não era proibido proibir?” Veja nesta semana fez o mesmo, “Mas não era proibido proibir?”.

Em pauta a contradição nas músicas dos próprios integrantes do Procure Saber:

>> “E eu digo sim/ E eu digo não/E eu digo: É/ Proibido proibir…” (“É proibido proibir”, de Caetano Veloso, vaiado no Tuca há 45 anos quando apresentou a música).

>> “Quando chegar o momento/ esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ esse samba no escuro…” (“Apesar de você”, de Chico Buarque, composta em 1970, virou hino contra a ditadura do presidente Médici. Por isso mesmo foi censurada até 1978).

>> “Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano/ Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser escutado.” (“Cálice”, de Chico e Gil, em 1973, censurada em plena ditadura.

Pela primeira vez Caetano se manifestou sobre a polêmica das biografias. Na sua coluna em O Globo (domingo, 13/10) ele afirma “ tenho um coração libertário. Sou o típico coroa que foi jovem nos anos 60”. E explica porque aderiu ao grupo Procure Saber da ex-mulher:

“Aprendi… que no cabo de guerra entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade, muito cuidado é pouco… O modo como a imprensa tem tratado o tema é despropositado… Não me sinto atraído pelo excesso de zelo com a vida privada e muito menos pela ideia de meus descendentes ficarem com a tarefa de manter meu nome “limpo”… pode vir a ter um neto que seja muito careta e queira fazer dele um burguês respeitável que ele não foi nem quis ser… Mas diante das palavras pesadas e, sobretudo, das grosserias dirigidas a Paula Lavigne, minha empresária, ex-mulher e mãe de meus dois filhos maravilhosos, tendo a ressaltar o que meu mestre Jorge Mautner sintetizou tão bem nos versos: ‘Liberdade é bonita mas não é infinita/ Me acredite: liberdade é a consciência do limite’.”

Agora o biógrafo decide se é melhor digladiar com o autor vivo ou morto.

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Norma Couri é jornalista