Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A palavra final é do STF

A norma contida no artigo 20 do Código Civil estipula uma necessária autorização do próprio interessado ou, como ocorre usualmente, dos detentores dos direitos autorais – herdeiros, em sua maioria – para que se possa publicar obra biográfica de pessoas públicas. Após inúmeros litígios, o assunto irá receber a interpretação do Supremo Tribunal Federal. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) requer nova interpretação para o artigo citado. A atriz Paula Lavigne, ao coordenar a entidade “Procure Saber” – além de reunir artistas de renome – posiciona-se contrária à ação. O que estaria em disputa aqui?

A letra da lei é direta; mas nem sempre a clareza da lei fornece a interpretação desejada pela sociedade. Resumindo: a exposição da imagem, via biografia, pode ser proibida pela pessoa pública (ou herdeiros) se se destinar a fins comerciais. Determinar a proibição destinada a fins comerciais significa dizer que a personalidade pública, ou seus herdeiros, poderia proibir a publicação de qualquer biografia. A proibição às biografias destinadas a fins comerciais encerra a discussão.

Se uma biografia não puder ser patrocinada por uma editora, que não possa cobrir custos de pesquisa do escritor, de lançamento e publicação do livro, não há samaritano que se lançaria a tal empreitada. Aqui, não haveria necessidade sequer de se questionar se haveria lesão à honra da personalidade pública na obra bibliográfica. Sequer se atingiria essa discussão. Proibir-se-ia, atualmente, simplesmente, porque haveria fins comerciais em jogo.

A biografia de Garrincha

Por outro lado, seria um consenso, pode-se vislumbrar, entre as personalidades públicas, ou seus herdeiros, o desejo, não só de monitorar o conteúdo que se lhes divulgam nas biografias, como obter, é claro, os rendimentos decorrentes da publicação de um livro biográfico. Não nos enganemos. Além do poder de controlar a forma como se expõe a imagem, há benefícios pecuniários em jogo. Não se pode olvidar a propriedade intelectual dos artistas e o direito de ascendentes e descendentes.

Ao discutir o cenário pecuniário envolvido, seria de bom alvitre lembrar o resultado final da biografia não autorizada de Garrincha, por Ruy Castro. Qual teria sido o desdobramento da disputa resolvida pelo poder judiciário? As herdeiras de Garrincha, cada uma, levaram, ao final, 5% do valor de cada livro vendido (com juros de mora de 6% a.a. desde a venda de cada livro), além de 100 salários mínimos a título de danos morais. Quer dizer, a obra não teria sido previamente autorizada, mas tudo se resolveu em perdas e danos (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 521.697/RJ).

Importa dizer que, pela interpretação atual do artigo 20 do Código Civil, se os detentores dos direitos autorais não autorizarem, sob seus subjetivos arbítrios, e decidirem quanto ganharão em pecúnia pela venda da obra biográfica, não se autoriza a veiculação. Ou melhor, considere-se, leitor, apenas para debate, ser o único herdeiro de uma celebridade; e, ainda, que o escritor da biografia seja o genial Ruy Castro. Detentor dos direitos autorais, você, leitor, pede, por exemplo, 5 (cinco) milhões de reais, além de 20% da venda de cada exemplar, para a necessária autorização. Se a editora aceitar sua proposta, você autoriza a biografia; se não aceitá-la, você não a autoriza. A interpretação do artigo discutido deveria ser formulada assim, ao livre arbítrio de apenas uma parte?

A liberdade de informar e ser informado

A ação requer que a interpretação do artigo 20 do Código Civil seja feita pelo STF “conforme” a Constituição federal. Uma “interpretação conforme” significa ler um artigo de lei infraconstitucional de acordo com a sistematização do texto da carta magna. Assim, autorizar a publicação de uma biografia de pessoa pública constituiria uma forma “privada” de censura. Não se poderia falar de estado democrático de direito e qualquer tipo de censura. A censura jamais poderia ser interpretada como pública ou privada. Ou, de outra forma, privar-se-ia os cidadãos ao livre acesso às informações. Cada leitor deveria formar seu próprio convencimento sobre o tema.

Consta de parecer emitido, em favor da Anel, pelo jurista Gustavo Tepedino, trechos emblemáticos para a discussão. O primeiro, diz respeito à forma pela qual se deveria circular o conhecimento na sociedade, inclusive acerca das biografias de personalidades públicas. Já a segunda passagem, refere-se ao modo pelo qual uma “interpretação conforme” pelo STF dar-se-ia para moderar a leitura do artigo 20 do Código Civil:

“[As biografias de personalidades públicas] (…) revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, da memória e da identidade cultural da sociedade.

(…) homens públicos, por assim dizer, protagonizam a história, ao assumirem posição de visibilidade, inserem voluntariamente a sua vida pessoal e o controle de seus dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato histórico e às biografias.”

A saída legislativa e o fim da discussão

Ao ler o brilhante artigo do jurista Roberto Dias, constata-se que a saída seria muito mais simples do que toda a celeuma discutida sobre o tema. O jurista nos informa que, atualmente, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 395/2011, o qual pretende inserir o parágrafo 2º ao artigo 20 do Código Civil.

A redação de tal parágrafo faria constar da norma contida na lei a estipulação: “A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional, tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade” (ver aqui).

Soma-se a isso o direito a perdas e danos pela própria pessoa pública ou dos detentores dos direitos autorais caso ocorra uma biografia sem a necessária e razoável consulta aos interessados. A lei não impede o ressarcimento pecuniário ou a retratação de fatos cujo direito tenha sido potencialmente lesado, entretanto, a posteriori. Porém, impedir a veiculação de conhecimento, a priori, constituir-se-ia censura privada.

Além de outras saídas técnicas, Roberto Dias assevera opções para prestigiar o pluralismo, o direito à informação, o acesso às fontes da cultura nacional e a liberdade de expressão. Eu acrescentaria: para que não sejam prejudicados os leitores, a sociedade, a história e a cultura nacional.

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STF deverá cancelar autorização prévia

Na Ação Direta de Constitucionalidade 4815 (ADI) por meio da qual se discute a exigência de autorização prévia para as biografias de pessoas públicas (e o direito de retirar a obra literária do mercado), a ministra Cármen Lúcia esclareceu que o tribunal necessita da opinião de especialistas, historiadores e juristas para decidir a ação, em virtude da complexidade do tema; e agendou uma audiência pública para os dias 21 e 22 de novembro de 2013.

A complexidade do tema, segundo a ministra, refere-se ao conflito entre valores e garantias fundamentais do indivíduo vs. valores e garantias fundamentais da sociedade. Isso significa dizer proteção à privacidade dos biografados contra proteção à liberdade de expressão e acesso à informação pelos cidadãos. Como a Constituição Brasileira protege ambos os princípios, há que se determinar uma solução jurídica para o embate.

Diante da existência de conflito entre garantias fundamentais constitucionais, o Supremo Tribunal Federal se utiliza do princípio da ponderação de interesses para solucionar os casos. Em outras palavras: pondera-se o peso de ambos os bens constitucionais contrapostos, de forma que a decisão seja apta a fundamentar uma solução eficaz. A solução tem que ser bivalente. Isso se dá mediante as seguintes indagações: a decisão tem que ser (a) adequada para um resultado desejável ao conflito entre os princípios constitucionais; (b) necessária para que não haja outra forma mais gravosa de conciliar as garantias em jogo; e (c) estabelecida de forma ponderável entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto.

A violação da dignidade humana

Aqui, a proteção à privacidade do biografado dar-se-ia pelas normas do Código Civil. Embora haja direitos autorais legítimos neste particular, a redação do artigo de lei teria sido infeliz. Ao mencionar a necessidade de prévia autorização da pessoa pública, inclusive, para o uso da imagem com fins comerciais – teria gerado a falsa ilação de que, havendo fins comerciais, logo, haveria violação aos direitos personalíssimos do biografado. O uso não autorizado de um bem patrimonial não justificaria a violação à garantia fundamental da privacidade da pessoa pública.

E o que dizer quanto à proteção da privacidade da pessoa pública nas biografias? Inicialmente, haveria duas noções capitais sobre a privacidade de pessoas públicas, as quais foram expostas em parecer emitido pelo jurista Gustavo Tepedino:

“[A biografia de personalidades públicas] (…) revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história.”

A proteção à privacidade das pessoas públicas teria que passar via narrativas históricas; e, por óbvio, não poderiam ser descritas senão a partir do arbítrio subjetivo do biógrafo! Eu acrescentaria à narrativa histórica, ainda, a exigência de pesquisa e apuração idônea dos fatos narrados, com extremo zelo no trabalho, para evitar a violação da dignidade humana.

“(…) homens públicos, que se destacam na história, ao assumirem posição de visibilidade, inserem voluntariamente a sua vida pessoal e o controle de seus dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato contido nas biografias.”

Liberdade de expressão e acesso à informação

A segunda noção apresenta uma tautologia: não há como ser famoso sem que a população não queira que a pessoa famosa seja conhecida! Ironicamente, o jurista afirma que certo grau de violação à intimidade ocorre com todos, famosos ou não; e menciona Daniel Defoe: desde que o nativo Sexta-Feira surgiu na ilha, lá se foi o “me deixe só” de Robinson Crusoé.

À privacidade das personalidades públicas importariam: (a) os exageros criados unilateralmente pelo biógrafo; (b) os boatos, para os quais não se afirma, no texto, que se constituem apenas alguns boatos; (c) a desinformação que prejudica não só o biografado, como a formação de convencimento dos leitores; (d) a nítida ofensa à honra e à dignidade humana; e, entre outras tantas violações a direitos, (e) a calúnia, a injúria e a difamação. Para remediar todas as lesões acima já existe solução jurídica, tanto na esfera comum, quanto na criminal.

Neste tema, é claro o consenso por meio do qual a liberdade de expressão deveria se ater ao propósito de informar, educar e apresentar fatos verossímeis no curso da história de vida da pessoa pública que, inevitavelmente, se faz biografada. Se o fato é legitimamente apurado, não se fala em violação de direitos e suas respectivas indenizações ou sanções criminais, embora muitos herdeiros tenham logrado receber, com o beneplácito da justiça, vultosas indenizações pecuniárias. Se houver na obra biográfica um propósito claro de ofender a pessoa pública, não só estar-se-ia violando a dignidade humana do biografado, como se violaria, ainda, a dignidade humana dos leitores receptores, cuja garantia ao acesso à informação restaria desnaturada, pela desinformação contida na obra biográfica e ausência de fontes legítimas para formação de convencimento.

O provável resultado

Importa dizer que, se, como diz a constituição, o pensamento é livre, até a liberdade de expressão que veiculasse ideologias minoritárias da sociedade não poderia ser cerceada, para não se configurar censura. Se a liberdade de expressão do biógrafo revela fatos públicos, importantes, de interesse da coletividade, sem causar danos ao biografado, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em precedentes, que prevaleceria a proteção das garantias aos interesses públicos, sobre as garantias a um indivíduo em particular.

E, para que o Supremo Tribunal Federal não venha a mudar sua interpretação sobre a exigência da prévia autorização das biografias, haveria de se alterar todo o raciocínio sistemático pelo qual se opera essa questão do direito. Afinal,

– Manter a prévia autorização das biografias significaria distinguir um assunto que pode ser publicado daquele que não pode ser publicado; seria extinguir o próprio conceito de liberdade de expressão.

– Retirar obras biográficas do mercado, sem que haja danos aos direitos do biografado, significaria negar a garantia fundamental ao acesso de informação pela sociedade, porque o interesse público desejaria conhecer a história da sua própria sociedade.

Muito se discute sobre o mérito do conflito entre a tutela dos direitos personalíssimos das pessoas públicas com a garantia dos princípios da liberdade de expressão e acesso à informação. Todavia, a discussão do mérito – “biografias e biógrafos” – confunde-se com o próprio meio de execução do problema ao longo do tempo de sua execução. O Supremo Tribunal Federal deverá acolher a nova interpretação para os artigos do Código Civil e derrubar a autorização prévia e o recolhimento de exemplares de biografias não autorizadas das livrarias. Duas noções fundamentais pautam o raciocínio do tribunal.

A consagração da censura privada

O primeiro raciocínio sistemático construído pela corte diz respeito ao caráter apriorístico da liberdade de expressão. Ainda que houvesse desvio de finalidade nas biografias, para que o pensamento possa ser livre, haveria de se ter um espaço para a sua manifestação a priori. Se a liberdade de expressão não pudesse sequer nascer, a manifestação do pensamento não existiria. Tal como votos dos ministros Ayres Britto e, na sequência, Celso de Mello [STF – HC 82424 – Tribunal Pleno]:

“(…) Mas a premissa da Constituição é uma só: não é pela possibilidade de agravo a terceiros, ou de uso invasor da liberdade alheia, que se vai coibir a primitiva liberdade de expressão (que se define, assim, como liberdade absoluta, nesse plano da incontrolabilidade da sua apriorística manifestação).”

“(…) Semelhante procedimento estatal que implicasse verificação prévia do conteúdo das publicações traduziria ato inerentemente injusto, arbitrário e discriminatório. Uma sociedade democrática e livre não pode institucionalizar essa verificação prévia (…). Os abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, quando praticados, legitimarão sempre a posteriori.”

A segunda noção que governa o caso diria respeito ao julgamento de forma abstrata do conteúdo da obra e da liberdade de expressão vs. tutela da pessoa individual. Não haveria como, caso a caso, engessar o judiciário com disputas sobre questões subjetivas publicadas nas biografias, para que se pudesse formar um juízo de valor a ponto de se visualizar a existência ou não de uma legítima negativa de autorização prévia. Assim, não havendo consenso entre as partes e com a permissão da lei para retirar os livros do mercado, a conclusão lógica que se chega denominar-se-ia “censura privada”. Tal como o voto do ministro Marco Aurélio [STF – HC 82424 – Tribunal Pleno]:

“não é correto se fazer um exame entre liberdade de expressão e proteção à dignidade humana, de forma abstrata e se tentar extrair daí uma regra geral. (…) A limitação estatal à liberdade de expressão deve ser entendida como caráter de extrema excepcionalidade e há de ocorrer apenas quando sustentada por claros indícios de que houve um grave abuso no exercício.”

Se o Supremo Tribunal Federal seguir os precedentes e a linha de raciocínio utilizada para as disputas entre liberdade de expressão e tutela de direitos individuais, a interpretação da lei receberá nova hermenêutica. Porque a exigência de prévia autorização para as biografias (com decisão a priori da disputa e análise abstrata do conteúdo), sob a ordem de retirar as obras do mercado, não poderia sacrificar as garantias coletivas em nome de interesse particular, salvo, a posteriori, venha a se constatar violação de lei. De outra forma, consagrar-se-ia a censura privada e extinguir-se-ia o gênero das biografias. (E.R.T.)

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Eduardo Ribeiro Toledo é advogado e escritor