Para certos europeus, a tristeza do trópico é coisa difícil de captar. Eles não entendem, não entendem, que é preciso mais do que sol para fazer alegria, essa, que é a prova dos nove. Foi na palavra sem perdão, palavra de desmonte, que a força brasileira atravessou Frankfurt, sob o pretexto de uma feira de livros.
Os desmontes foram se acumulando e transpareceram, por exemplo, na fala do diretor do evento, Jürgen Boos, durante a cerimônia de encerramento da Feira do Livro de Frankfurt, no domingo (13/10): “O que vivemos aqui, nessa semana, foi a força da literatura, uma força destruidora, mas que também pode ser criadora. Com sua presença, o Brasil conseguiu afastar todos os clichês. Seu poder destrutivo quebrou os clichês.” O discurso foi breve e comovido, de uma comoção sutilmente sobreposta à melodia sóbria da língua alemã.
No signo do inesperado, os tijolos de papelão encaixados que compunham o pavilhão brasileiro projetado por Daniela Thomas e Marcelo Tassara foram emblemáticos. Ninguém esperava, de um país tão colorido, a predominância da cor branca: nas paredes curvas, nas grandes mesas ao estilo das marquises de Oscar Niemeyer, nos estandes e prateleiras de exibição. Quem deu o colorido foram os livros e os visitantes, além, claro, de elementos isolados na cenografia: uma ilha de redes onde se podiam folhear livros ou tirar uma soneca e um canto onde bicicletas geravam vídeos. Mas o branco estava lá, inquietante como um baixo contínuo.
Como é que o brasileiro consegue?
Ninguém esperava, além disso, o desmonte causado pelo discurso inaugural. Com a fala de Luiz Ruffato, desfez-se a expectativa de uma nação pomposa desfilando pelos corredores do maior evento editorial do mundo. O escritor tocou a ferida de nossa genealogia:
“Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – o seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.”
No momento seguinte, dentro e fora do evento, só se falava de Ruffato. A imprensa alemã deu ênfase a outro ângulo de seu discurso: o do garoto que teve o destino transformado pelo contato com os livros. Num programa de televisão, ele foi chamado de “escritor improvável” (unwahrscheilicher Schriftsteller) devido à origem pobre, marcada pelo analfabetismo dos ancestrais e pelo trabalho duro que não o impediu de sonhar. Eis um dado finamente revelador do imaginário alemão que, por sutilezas da distância cultural, pouco apareceu na cobertura brasileira: o direito de sonhar.
Sonhar é um direito que ainda não foi tirado do brasileiro. É na força desejante do sonho que conseguimos driblar as impossibilidades. Na Alemanha, por sua vez, onde muitos direitos importantes são assegurados, o do sonho é reprimido desde cedo. Ricos e pobres desse país, principalmente os pobres, aprendem logo a se conformar. Reconheço aqui o grande perigo da generalização, mas foram esses mesmos traços grosseiros que pautaram grande parte da cobertura alemã sobre o fenômeno Luiz Ruffato: “Como foi que ele conseguiu?”, perguntaram-se os jornalistas espantados sob efeito do discurso da cerimônia de abertura.
Risos de uma verdade amarga
Estive com Ruffato no dia seguinte. Conversamos enquanto ele almoçava um sanduíche de presunto assado com chucrute no pátio da feira. Foi conversa, não foi entrevista. Perguntei se incomodava o fato de, naquele momento, toda a mídia se alvoraçar com seu discurso e, ao mesmo tempo, ignorar sua produção literária. “Prefiro antes ser reconhecido como cidadão do que como escritor”, disse. “Se as pessoas puderem ouvir minha história, ouvir que mesmo eu sendo feio, careca, baixinho e não ter dinheiro, sou convidado no mundo todo para falar, contar histórias. Se isso for motivo para incentivar alguém a crescer, estarei satisfeito.”
Num país onde a literatura ainda é artigo de exceção, Ruffato não despreza a oralidade. Ser ouvido já significa um grande passo rumo à mudança: “Faço muitas visitas a escolas. Se eu ajudar a despertar o sonho desses meninos, é o que importa. Eles não precisam ler meu livro, basta me escutarem. A literatura é passageira, a vida vale mais. Vida, só tem uma.”
Falamos também da recepção de sua literatura na Alemanha pela imprensa. Mesmo antes de chegar à feira, já se sabia que Ruffato falaria em nome dos 70 escolhidos para o evento. “Quando isso foi publicado, fui procurado e entrevistado por cinco canais de TV, quatro alemães um austríaco. Sabe quantas entrevistas dei naquele momento à mídia brasileira? Nenhuma.” Sim, rimos dessa verdade amarga e lembramos de um outro ilustre da lista que, por ter declarado ausência, ganhou mais espaço nos jornais do que os presentes. Depois, caminhamos até o estande de seu editor alemão e nos despedimos ainda ansiosos com o que a feira nos reservaria.
A relação com a imagem
De caráter destrutivo, dissolvendo clichês e comovendo senhores do protocolo, a presença do Brasil em Frankfurt foi marcada pela discussão da identidade. Ou melhor: por tudo aquilo que não é identidade, que ainda não tem predicado, característica, caráter, como Macunaíma. Apesar de tentativas isoladas de maquiar uma realidade pulsante e de mascarar as injustiças, venceu a agonia daqueles que querem mostrar um país em plena dissonância.
A curadoria da programação brasileira, coordenada por Antonio Martinelli, teve o mérito de transformar a exposição da ferida nacional em evento estético internacional. A estratégia de desmonte transpareceu, por exemplo, no tema de conferência oferecido a José Miguel Wisnik: “Formação e crise do discurso da nacionalidade”.
Ao final de sua fala, trocamos algumas palavras no pavilhão brasileiro. Autor do livro Veneno remédio: o fubebol e o Brasil, Wisnik recorre à ideia de phármakon para tratar a relação do brasileiro com sua própria imagem. Palavra grega que significa droga, o phármakon se efetiva na intensidade da dose: pode tanto matar quanto curar: “Esse acaba sendo meu lema, no sentido de que a apresentação do Brasil se dá no sentido da ambivalência e da pendulação”.
Vestígios da destruição
Perguntei-lhe novamente: então o Brasil é um fármaco, que tipo de fármaco? “O próprio. O Brasil é uma droga. Oscila entre uma visão negativa e positiva e o futebol que, muitas vezes, é o elemento que permite essa pendulação. Meu ensaio sobre o futebol desenboca no problema das interpretações do Brasil.”
De fato, há tantos Brasis quanto há interpretações. Wisnik concentra-se nos três textos incontornáveis do nosso problema de identidade: os de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. A visão de Casa grande e senzala, diz, “é a de uma droga positiva, de um remédio na cultura tropical, original, uma afirmação da mestiçagem.” Já em Raízes do Brasil, aparece o paradigma da ambivalência: “o homem cordial é ao mesmo tempo informal, adaptável e truculento, arbitrário, pois age na esfera da pessoalidade e não das instâncias públicas. Nele, as instâncias públicas são pessoalizadas, tanto para o bem quanto para o mal.” E, por fim, Formação do Brasil contemporâneo “tem uma visão crítica de um processo que nunca se completa, que é inorgânico, que não sustenta projeto. Digamos que, nos três, está o phármakon agindo em doses diferentes”.
Por sua complexidade, o Brasil não pode ser reduzido a isso ou aquilo, tampouco a nada. Essa foi a tônica, um traço de sentido recolhido não só nessa fala, mas na reunião de tantas presenças dissonantes, agônicas, na Feira do Livro de Frankfurt. Wisnik, no rumo da complexidade e da porosidade, lembra que as tensões do veneno e do remédio devem “ser olhadas justamente no modo como elas se encaixam em pontos cegos.” E pontos cegos, temos muitos.
No mais, sobre o que será feito da demolição, não é da conta dos demolidores. Como disse, há quase um século, Walter Benjamin, “o caráter destrutivo elimina até mesmo os vestígios da destruição”.
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ENTREVISTA / DANIEL MUNDURUKU
“Não estou aqui como cotista”
Desde que o Süddeutsche Zeitung, em agosto passado, acusou de racista a seleção de 70 escritores para a Feira do Livro de Frankfurt, Daniel Muduruku tem sido referenciado na imprensa como o “único indígena da lista”, tendo a seu lado Paulo Lins, “o único negro”. A matéria do jornal alemão, sob a rubrica “Racismo no Brasil: 140 tons de marrom“ apareceu com subtítulos como “A cor dos gatos” e “Cotas para pessoas de cor no serviço público”. Isso mesmo: o jornal que denuncia o racismo no Brasil é o mesmo que faz uso de eufemismos anacrônicos e incorretos do tipo “pessoa de cor”.
Apesar da abordagem controversa, a matéria desencadeou grande número de reações. Do Brasil, o Ministério da Cultura e a curadoria do evento tentaram se retratar. Ao mesmo tempo, Lins e Munduruku se tornaram fontes concorridas para entrevistas que só tentaram corroborar uma tese pré-estabelecida, o que pôs à sombra suas produções literárias.
No último dia da Feira do Livro (13/10), conversei com o filósofo, doutor em Educação, professor, pesquisador, militante da causa indígena e escritor Daniel Munduruku Monteiro Costa.
“Acho que o Brasil está muito bem representado”
Quem é o Daniel que está aqui, já que a imprensa, tanto no Brasil quanto na Alemanha, privilegiou o lado de representante de minoria indígena?
Daniel Munduruku – Claro que não posso abrir mão do que sou. Antes de qualquer coisa, sou indígena. E como indígena não posso me negar, através da minha escrita e da minha presença, a trazer à tona essa questão. Minha escrita já é uma escrita engajada na luta política. Ser educador é ser político, não tem outro jeito. Como sou da Amazônia, fui convidado para representar minha região. Mas não venho como indígena, venho como autor. Essa feira não é um lugar para ser índio, é um lugar para ser escritor. É um universo do qual também faço parte, o editorial. Dentro de mim convivem esses universos todos. Nunca tiro uma roupa para vestir outra. Sei que estou aqui porque escrevo e, modéstia à parte, tenho escrito de forma que agrada ao leitor brasileiro. Por isso, o governo brasileiro, as instituições ou outros governos não podiam ficar alheios ao fato de haver um índio que escreve bem e agrada aos leitores.
Você se incomoda ou se incomodou com o fato de sua origem e personalidade receberem mais destaque do que sua obra?
D.M. – Não. Não me incomoda. Acho que se falarem de mim, bem ou mal, o incômodo acaba sendo deles e não meu. A imprensa usa essas indicações (índio, exceção, cota) de forma política. Eles pensam que o governo fez uma escolha política por me colocar aqui, uma escolha para suavizar injustiças. Não estou aqui como cotista. Estou aqui como uma pessoa que escreve bem e cuja escrita está fazendo diferença no Brasil.
Como você vê, nesse contexto, a discussão polêmica sobre a lista de escritores participantes e da representação de minorias étnicas? Essa discussão tem importância para você?
D.M. – É uma bobagem ficar discutindo nomes de pessoas. O Brasil tem uma gama tão grande de autores, de tudo quanto é gênero, que qualquer um que você colocasse aqui, eu ou qualquer outro, iria de algum modo representar o movimento literário brasileiro. O problema é as pessoas se ferirem por coisas como “meu amigo não foi escolhido”. Se o governo brasileiro, ao me escolher, o fez somente para evitar ou amenizar críticas, pensou errado. Prefiro não pensar assim. Houve critérios e esses critérios têm de ser respeitados. Acho, sim, que o Brasil está muito bem representado de escritores aqui em Frankfurt.
Planejamento do futuro não faz parte da cultura indígena
Seu contato com a Alemanha começou já antes da feira. Você visitou outras cidades do país, participou de leituras, de debates. Em junho, esteve no Festival de Colônia e fez leituras para crianças. Como foi recebido e em que setores as pessoas estiveram mais em sintonia com a sua mensagem?
D.M. – Fiquei muito surpreso. De maneira geral, fui muito bem recebido. Houve um trabalho de preparação, as crianças estavam preparadas para ouvir sobre minha literatura, sabiam de onde eu vinha. Mas claro que houve estranhamento, algo que nada tem a ver com ser indígena, mas com o fato de eu ser um autor completamente desconhecido para eles, assim como é desconhecida a linhagem dos Munduruku. Além disso, gostei muito do trabalho que os eventos de leitura que fizeram com meus livros. Claro que, quando se trata de crianças, elas acabam indo para um universo que ultrapassa a literatura, fazem muitas perguntas sobre a vida diária dos indígenas. Mas isso também acontece com meu público brasileiro. São curiosidades sobre como é viver na floresta, o contato com a natureza. Sendo crianças, têm mais é que perguntar pois não têm nenhum compromisso com um conhecimento prévio.
E depois da feira, o que vai ser?
D.M. – Não faço muita projeção. O planejamento do futuro não faz parte da cultura indígena. Ainda estou aqui, usufruindo esse momento e me sentindo muito bem. Sei que quando chegar ao Brasil, terei que fazer uma reentrada no universo literário, de publicação, de produção. Tenho compromissos. Continuarei, claro, minha luta com essa temática, com o movimento indígena brasileiro. Confesso que ficaria muito satisfeito se meus livros virassem um grande sucesso de vendas, mas não me fixo nessa expectativa. (D.N.O.)
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Danielle Naves de Oliveira é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação