Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

É proibido proibir?

Lá se foi o tempo em que os artistas acreditavam na máxima “é proibido proibir”, pichada nos muros de Paris durante a famosa primavera de 1968. Ninguém em sã consciência pode concordar com censura prévia ou proibição às biografias. Uma biografia nada mais é do que uma reportagem alentada sobre a vida de alguém geralmente famoso. Aceitar a censura seria o mesmo que coibir a liberdade de informação num país marcado por duas longas ditaduras e até hoje carente de sua própria História.

Nessa polêmica toda, o que mais surpreende é que gente que foi perseguida e censurada no auge da ditadura militar queira agora controlar a informação. Ora, ninguém é dono da própria história, já que uma história permite várias versões. O que deveria ser feito é ampliarem-se os mecanismos legais para que possam ser punidos autores que ajam de má-fé. Quando bem feita, uma biografia ajuda a contar a História e a resgatar fatos relevantes na vida de um povo. Nesse sentido, algumas vidas se confundem com a memória nacional e conhecê-las melhor certamente nos aproximará da verdade sobre nós mesmos.

Para ser legítima, uma biografia não pode necessariamente ser autorizada ou encomendada pelo biografado, o que seria mera publicidade. Ainda mais suspeita é a autobiografia, obra promocional na qual o sujeito conta o que lhe interessa contar. Vale perguntar se torturadores e políticos corruptos – ou seus herdeiros – aprovariam a publicação de suas biografias não autorizadas.

O absurdo da situação

Seja como for, toda profissão tem bons e maus profissionais. Assim como existem compositores do porte de Gilberto Gil e Chico Buarque, também há biógrafos acima de suspeitas, como Fernando Morais e Ruy Castro. E a crença de que o biógrafo fica rico escrevendo sobre a vida alheia cai por terra ao constatarmos que literatura dá menos dinheiro que música, num país de tão poucos leitores.

Com todo respeito aos nossos ídolos da MPB, não resisto à tentação de mostrar uma paródia da música “Cálice”, composição de Gil e Chico em ataque direto à censura dos militares. Quem se der ao trabalho de ler a letra, deve ouvir a melodia na rádio-cabeça para entender o absurdo da situação atual:

Biógrafo

Pai, afasta de mim o biógrafo / Pai, afasta de mim o biógrafo / Pai, afasta de mim o biógrafo / Que quer sugar o meu sangue

Como reler a minha própria história
Lembrar de cor toda a minha labuta

Mesmo famosa a vida me pertence

Silêncio eu quero sobre a face oculta

De que me vale ser um cara pop

Melhor seria ser desconhecido

Não ter no pé repórter enxerido

Nem me esconder feito cantor de rock

Pai, afasta de mim o biógrafo…

Se a biografia é um livro de luxo

De capa dura, à noite eu escrevo

Um novo samba no qual me atrevo

A criticar todo esse nosso lixo

Essa polêmica me atordoa

Um imortal também guarda segredo

Biografia sempre me dá medo

Não vou ceder, não tem meu pé me doa

Pai, afasta de mim o biógrafo…

De muito velha a musa já não canta

De muito doida já não mais inspira

Como é difícil, pai, ser caipira

Se o breganejo todo me suplanta

A biografia errática do cara

Não sai barata e é má reportagem

Deixo por menos obra que é tão rara

Quero vetar toda essa sacanagem

Pai, afasta de mim o biógrafo…


Talvez no fundo eu seja vaidoso
Por inventar o meu próprio desejo

Quero cortar com a faca esse meu queijo

E proibir biógrafo teimoso

Quero exercer minha própria censura

Pra minha imagem não ter prejuízo

Os meus demônios eu mesmo exorcizo

O criador não quer ser criatura

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Jorge Fernando dos Santos é jornalista e escritor