Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Contra o cultivo do ódio

Nos minutos finais de sua entrevista a Alberto Dines no Observatório na TV exibido em 22/10 (ver aqui), Fernando Gabeira compara a boa literatura ao bom jornalismo, que nos põem diante das contradições e complexidades do mundo, e critica o enfoque militante que “tende a cortar a realidade entre aquela que ele aceita e aquela que ele não aceita, entre o bem e o mal”. Conclui dizendo que “o militante no jornalismo joga com uma força muito grande contra ele, que é a dificuldade de ele ver o que não gosta, e a tolerância diante daquilo que ele gosta”.

De saída é preciso sublinhar que esse “bom jornalismo” é artigo raro no cenário atual da nossa mídia, que está longe de oferecer esse quadro rico e complexo da realidade para que o público possa ter o máximo de elementos possíveis para fazer seus julgamentos. Pelo contrário, a mídia frequentemente padece dos mesmos males dessa militância, às vezes disfarçada, às vezes explícita. Mas quem quer se opor a ela não pode simplesmente trocar os sinais, para não cair no mesmo vício que denuncia.

Antes que se mal entenda, não estou com isso querendo dizer que o jornal ou o jornalista devam se esconder atrás de uma suposta imparcialidade: como já pude argumentar aqui (ver “A militância e as responsabilidades do jornalismo“), uma coisa é assumir de que lado se está, outra é ignorar o papel de mediador que todo jornalista precisa exercer. É uma questão ética fundamental, que não pode ser ignorada sob nenhuma hipótese.

A defesa das “múltiplas parcialidades”, por exemplo, que ganhou força com o protagonismo da Mídia Ninja nas Jornadas de Junho, parte da constatação de que a mídia é parcial, e por isso distorce, oculta, engana e até mesmo mente. Então estaríamos autorizados a fazer exatamente o mesmo em sentido contrário, embora o façamos, como sempre, em nome da verdade. Restaria ao público escolher entre uma incomensurável variedade de mentiras, enquanto o compromisso básico do jornalismo é com o esclarecimento. Neste caso, sempre se estará diante de uma disputa de diferentes interpretações de um mesmo fato: mas o respeito aos fatos é essencial.

Os tempos turbulentos que estamos vivendo têm facilitado a cegueira em relação ao contraditório, precisamente no sentido apontado por Gabeira, o que é fatal para a apreensão da realidade e, consequentemente, para a ação política daí decorrente. E se privilegio aqui a crítica aos midiativistas é não apenas porque a grande imprensa já é alvo sistemático de crítica neste espaço, mas porque aposto na importância do contradiscurso para a democratização da comunicação. Daí a relevância das iniciativas à margem do mercado dominante e a necessidade de consolidação de experiências alternativas. Daí, também, o meu espanto com as atitudes que têm prevalecido nesse campo autodenominado “independente” na cobertura das manifestações atuais.

A caçada aos jornalistas

Na terça-feira (22/10), participei do segundo debate da série “Redes, Ruas, Mídias: Revolta e Reação”, voltada para a discussão dos múltiplos aspectos dessas manifestações. Foi no dia seguinte ao do leilão do campo de Libra, na Barra da Tijuca, onde mais uma vez jornalistas foram hostilizados pela polícia e por manifestantes mascarados. Um dos membros da mesa apresentou trechos da página do Black Bloc RJ daquele dia, que incentivava a caçada aos jornalistas: “Alguém avisa ao pessoal que tá lá na Barra que tem um repórter da Globo disfarçado de ninja falando um monte…”. Logo viriam os comentários:

>> “Já acharam, é uma menina baixinha morena, cabelo liso, rabo de cavalo, rápida, calça jeans e camiseta preta, segura a câmera com as 2 mãos e fala ao telefone com fone ou bluetooth”.

>> “Arranca essa filha da puta daí!”

>> “Pau nela sem pena!”

>> “Enfiem a mão nessa vadia!”

>> “Um filma e o outro fala no ao vivo. São dois”.

>> “Dá porrada nela!”

>> “Corta o cabelo dela, raspa a sobrancelha delaaaaa”.

>> “Taca fogo neles…”

>> “Se for gostosa, deixa ela pelada”.

E assim por diante. Raros foram os comentários em sentido contrário, seja contestando a censura, seja simplesmente criticando a violência física mas apoiando o impedimento ao trabalho, como este:

>> “Apenas tirem-na de cena. Confisquem a bateria do equipamento dela e devolvam o aparelho”.

Como se recorda, nesse dia um carro de reportagem foi virado e só não foi incendiado porque os bombeiros chegaram a tempo, e uma repórter, depois de hostilizada por um soldado, foi violentamente agredida por manifestantes, conforme relato publicado neste Observatório (ver “Somos todos Aline Pacheco“).

Na plateia, um dos estudantes perguntou às duas representantes de um recém-criado coletivo de mídia alternativa o que elas achavam das agressões. Explicou que não gostaria de estar numa situação daquelas, cobrindo uma manifestação, e ter o carro de reportagem destruído.

“O carro não é seu”, respondeu serenamente uma das moças.

(Pausa para a perplexidade: então estamos autorizados a destruir tudo o que não seja “nosso”?).

O rapaz logo se recompôs e argumentou: “Mas é meu instrumento de trabalho”. E ela: “Mas nós não queremos que você trabalhe”.

A igualdade seletiva

Esse breve diálogo é muito revelador do atual estado de coisas: em nome da contestação ao sistema, e à mídia hegemônica em particular, esses grupos se consideram no direito de definir quem pode ou não trabalhar, e se apropriam do espaço público utilizando a mesma tática das milícias que tanto dizem condenar.

Bem a propósito, as midiativistas se disseram ao lado dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Jornalistas não são trabalhadores? Talvez não: são inimigos porque, segundo essa lógica rasteira, reproduzem o ideário das empresas para as quais trabalham. Assim, trabalhador é quem nós dizemos que é; por isso, podemos dizer quem está ou não autorizado a exercer seu ofício. Em suma, podemos dizer quem merece ou não ser livre, de modo que – como em tantos outros momentos da história da humanidade – nos achamos no direito de instituir a censura em nome da liberdade (ver aqui).

Já ao final do debate, uma das jovens declarou que sentia muito mais a morte dos moradores da Maré – numa chacina ocorrida em fins de junho naquele conjunto de favelas do Rio, no auge dos protestos – do que a agressão a jornalistas, esquecendo, talvez, uma palavra de ordem recorrente nas manifestações – “a polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela” – e sem perceber que essa distinção é incompatível com o respeito aos direitos humanos. A não ser que desejemos reproduzir, com o sinal trocado, a conhecida ironia da igualdade seletiva, segundo a qual uns são mais iguais que outros.

Não é difícil vislumbrar para onde nos conduzirão essas “alternativas”.

Entre a convicção e a responsabilidade

Mas não se trata, pura e simplesmente, de rechaçar esse comportamento cego ao contraditório e tolerante com a violência “de esquerda”. Esse estado de coisas impõe uma discussão mais profunda sobre ética, que remete à conhecida distinção weberiana entre as éticas de convicção e de responsabilidade.

O debate acima referido fornece exemplos típicos de ética de convicção: fazemos o que achamos correto, sem nos importarmos com a consequência dos nossos atos. Ocorre que, tanto na vida cotidiana quanto na vida política, o cálculo das consequências é imprescindível. De fato, o que se passa na vida prática é uma articulação entre as duas éticas: é preciso ter princípios universais norteadores de nossa conduta, que entretanto não poderá ignorar as circunstâncias. Do contrário, poderemos provocar resultados desastrosos em nome das melhores intenções, como no famoso exemplo do pacifista que se recusa a lutar e assim facilita a ação de quem pretende exterminá-lo.

O primeiro grande problema está no estabelecimento dos limites para a flexibilização dos princípios: até que ponto podemos ceder? Se o pacifista relativiza suas convicções e aceita lutar, até que ponto estará apenas se defendendo e a partir de que ponto começará a reproduzir as práticas que ele próprio condena?

O outro problema é que, numa luta de enfrentamento contra o sistema, quem determina a nossa conduta tende a ser o inimigo, de modo que somos obrigados a fazer o que não desejamos.

O exercício da dúvida

Esses questionamentos, entretanto, não parecem fazer parte das preocupações dos coletivos de mídia alternativa. A grande maioria se declara contrária às agressões a jornalistas. Ao mesmo tempo, defende a ação dos Black Blocs, supostamente apenas reativa à violência policial e voltada aos chamados “símbolos do capital”. É um discurso que não resiste às evidências, não só pela reiterada depredação de bens públicos mas pelo recorrente ataque a repórteres. Complacente, portanto, com a força bruta que elimina a hipótese de diálogo.

Os militantes vêm citando à exaustão o famoso poema de Brecht sobre as margens que comprimem o rio aparentemente violento, perfeita metáfora para desvendar a violência estrutural da sociedade. Poderiam recordar outro poema, que exalta a dúvida como a maior das certezas do mundo. “Penso, logo hesito”, na feliz paráfrase de Eduardo Gianetti à máxima cartesiana. Exercitar a dúvida, questionar convicções, avaliar responsabilidades, para evitar o cultivo do ódio que nos conduz à barbárie.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)