Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ainda biografias

Uma pergunta para Roberto Carlos: se o indivíduo é dono da própria história, como é que se vai escrever a História das Civilizações?

Zuenir disse que o assunto tinha se esgotado. Caetano respondeu que o assunto ainda tinha muito o que dar. Ambos têm razão. O assunto esgotou a paciência pública, mas não se esgotou no mérito, se é que algum assunto humano possa se esgotar.

Mesmo que o pleito do Procure Saber perca visibilidade após a autocrítica divulgada esta semana pelo grupo (com o vídeo de Gil e Roberto Carlos), continuará no ar o desconforto e, nos tribunais, a guerra.

Como já escrevi, com candura, minha opinião sobre o mérito semanas atrás, vou deixar desta vez o mérito para lá e entrar num outro terreno: a expectativa que a idolatria incute num fã e as consequências de conhecê-lo como pessoa. E uma pergunta dirigida especialmente a Roberto Carlos: se o indivíduo é dono da própria história, como é que se vai escrever a História das Civilizações? Baseada somente na autoimagem de seus expoentes e coadjuvantes?

Um fã do compositor alemão Richard Wagner pode se aborrecer com o fato de ele ter sido um antissemita confesso, e, sobretudo, de sua obra ter sido usada como trilha sonora dos campos de concentração. Um judeu pode se aborrecer ainda mais, e renunciar ao deleite de uma abertura de “Tannhäuser”. Cada um na sua. Eu ouço Wagner com devoção, sem deixar de lamentar suas posições e o sofrimento dos que passaram pelos campos ou tiveram parentes torturados pelo uso perverso da arte como moldura da ideação racista.

O exemplo é radical só para ser emblemático. Caetano, Chico e Gil nada têm a ver com o Terceiro Reich. Ao contrário, estão associados a um passado de rica contestação, mais ou menos ideológica, política ou comportamental.

Mas, nos dias de hoje, quando a democracia é queridinha tanto de contestadores quanto de anarco-capitalistas, a posição de Caetano, Gil e Chico a favor da censura prévia provocou um anticlímax parecido com o que um judeu melômano pode sentir ao descobrir, pela primeira vez, os pecados de Richard Wagner.

Texto definitivo

O que é natural: mitos são cobrados como mitos e não como pessoas. Quando chega a uma certa longevidade, o vulto do mito se converte em narrativa fechada: nela só entra aquilo que reitera ou homologa a superfície.

Na visão do fã, os atos e os fatos do passado estão para o mito como um núcleo está para um átomo. O mito contestador do sistema será sempre um contestador do sistema. Um democrata não pode questionar nenhum matiz do conceito de liberdade sem virar o demo.

Para o fã começar a entender que um mito não se encerra em si é preciso explodir o núcleo e provocar um tipo de fissão, o que resulta numa terrível confusão (ou confissão?) de ideias e sentimentos. Pois envolve a aceitação de que se trata, ali, de gente, além ou aquém do mito.

Um mito não defende interesses pessoais (a não ser nas narrativas sobre os deuses da antiguidade). E, na questão em debate, essa pessoalidade extrapola os limites de discussão de ideias: não há como dissociar o interesse pessoal do debate intelectual. Do contrário, haveria passeatas com duzentos mil artistas, empresários, mendigos e médicos, contra o risco de suas vidas serem abduzidas por um biógrafo.

A obra de Caetano, Gil e Chico e até suas biografias pessoais, autorizadas, desautorizadas, censuradas, liberadas, de punho próprio, fragmentadas, virtuais ou transcendentais vão sobreviver com folga a esse momento. A explosão do núcleo do mito é salutar para se entender um ser humano de forma mais abrangente, e entender também a época em que vive.

Polanski não deixou de ganhar Oscar por ter sido odiado como vil estuprador (as desculpas de mãe e filha só vieram recentemente). Andy Warhol em muitos aspectos era um sacana. Woddy Allen sobreviveu à pecha de seviciador de enteada. Por mais que se fale de suas piores e melhores facetas, mantém-se o mistério sobre sua real personalidade.

Por isso, aliás, a ideia de uma biografia definitiva, reivindicada por alguns autores e editores, é uma perfeita tolice. Por mais que se escrevam biografias sobre um indivíduo, a verdade de um ser será, no máximo, tangenciada. Por isso é tão bom que se conheça o máximo possível de versões, incluindo o viés lendário, o imaginário coletivo, o folclore, os bons textos e os textos indigentes.

Certa vez, decepcionado com o fato de Gilberto Gil ter vendido os direitos de uma música sua (sobre liberdade digital) para um anúncio de um poderoso banco na televisão, eu lhe enviei um e-mail, como fã e também como jornalista. Gil respondeu com muita serenidade falando justamente do choque entre a expectativa de um fã e a realidade de cada um, suas diferentes necessidades em diversos momentos, e suas relações variáveis com os valores, monetários ou morais.

Na época publiquei a conversa na internet e não houve grilo. Foi o tipo de diálogo que não encerra questão alguma, mas que muito diz do caráter transitório dos fenômenos.

Quanto a Roberto Carlos, é um caso mais complexo, tratado com brilho por José Miguel Wisnik, num texto comovente, daqueles que não estão sujeitos a revisões de posição semanais. Talvez porque Wisnik, apesar de grande artista e intelectual a anos-luz da vaidade, esteja mais preocupado com a arte e o pensar do que com aquilo que se diz da sua vida pessoal. Melhor para a sua vida. E, também, para a sua arte e o seu pensar.

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Arnaldo Bloch é colunista do O Globo