Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Glenn Greenwald e Bill Keller trocam ideias e provocações

Boa parte da especulação sobre o futuro do jornalismo se dá em torno do modelo de negócios: como iremos produzir a receita para pagar as pessoas que coletam e divulgam as notícias? Mas o poder destrutivo da internet levanta outras questões profundas sobre aquilo em que o jornalismo vem se tornando, sobre seu caráter e valores essenciais. A coluna desta semana [passada] é uma conversa – uma discussão (em sua maior parte) educada – entre duas opiniões distintas sobre a maneira pela qual o jornalismo preenche sua missão.

Glenn Greenwald é o autor da matéria provavelmente mais importante do ano: as revelações de Edward Snowden sobre o imenso aparelho de vigilância construído pela Agência Nacional de Segurança [NSA, na sigla em inglês]. Ele também tem sido um crítico franco do tipo de jornalismo praticado em lugares como o New York Times, e um defensor de um jornalismo mais ativista, mais partidário. No início de outubro, ele anunciou que iria participar de um novo projeto jornalístico, apoiado pelo bilionário Pierre Omidyar, fundador do site eBay, que prometeu investir 250 milhões de dólares e “livrar-se de todas as velhas regras”. Convidei Greenwald a participar comigo de uma troca de e-mails sobre o que, exatamente, significa isso. [Bill Keller]

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Caro Glenn,

Chegamos ao jornalismo por tradições diferentes. Passei uma vida trabalhando em jornais que recompensam um tipo de reportagem agressivo, mas imparcial, e esperam que repórteres e editores guardem para si suas opiniões, a menos que as transfiram (como eu próprio fiz) para as páginas claramente identificadas como de opinião. Você vem de uma tradição mais ativista – primeiro, como advogado, depois como blogueiro e colunista e, dentro em breve, participante de um novo projeto de jornalismo independente patrocinado pelo fundador de eBay, Pierre Omidyar. Seu texto tem como origem um ponto de vista claramente definido.

Num post que publicou na Reuters neste verão, o crítico de mídia Jack Shafer comemorava a tradição do jornalismo partidário – “De Tom Paine a Glenn Greenwald” – e a comparava ao que chamou de “o ideal corporativo”. Ele não explicou a frase, mas acho que ele não queria ser simpático. Henry Farrell, que tem um blog no Washington Post, escreveu mais recentemente que publicações como o New York Times e o Guardian “têm relações políticas com governos, que se irritam com a publicação (portanto, a confirmação) de determinados tipos de informação” e sugeriu que este novo projeto, seu e de Omidyar, representaria uma alternativa bem-vinda para se escapar a essas relações.

Acho que a história americana dos jornalistas militantes tem muito a admirar, do jornalismo panfletário e do sensacionalismo ao new journalism da década de 60 e aos atuais blogueiros ativistas. Seu entusiasmo e paixão estimularam autênticas reformas (muitas vezes, como foi o caso da reforma na Era Progressista [período de intenso ativismo social e político, da década de 1890 à de 1920], graças às “relações políticas dos jornalistas com os governos”). Espero que a cobertura que você fez da vigilância hiperativa da Agência Nacional de Segurança leve a uma responsabilidade que lhe é devida.

Mas o tipo de jornalismo que o Times e outras organizações da grande mídia praticam – em seus melhores momentos – também inclui muitos motivos de orgulho, das revelações de Watergate e de tortura e prisões secretas às de delitos na indústria financeira, assim como algumas revelações sobre abuso de autoridade por parte da NSA anteriores às revelações de Snowden. Esses são destaques que me vêm à cabeça, mas você encontrará exemplos nas reportagens de praticamente todos os dias. Os jornalistas desta tradição têm inúmeras opiniões, mas ao colocá-las de lado para seguir os fatos – assim como um juiz, no tribunal, deve pôr de lado preconceitos e seguir a lei e as provas –, podem produzir resultados mais substanciosos e com mais credibilidade. A grande mídia teve suas falhas – episódios de credulidade, comparações falsas, sensacionalismo e falta de atenção – e por elas fomos merecidamente punidos. Suponho que você diga que a punição não foi suficiente. Portanto, passo-lhe a palavra.

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Caro Bill,

Não há dúvida alguma de que jornalistas de determinados lugares da grande mídia, e isso inclui, com certeza, o New York Times, produziram excelentes reportagens durante os últimos vinte anos. Acredito que ninguém conteste que aquilo que se transformou (bastante recentemente) no modelo-padrão para um repórter – esconder as avaliações subjetivas ou o que parecem ser “opiniões” – exclua o bom jornalismo.

Mas esse modelo também produziu bastante jornalismo indigno e alguns hábitos tóxicos que vêm enfraquecendo a profissão. Um jornalista que fique paralisado por expressar quaisquer opiniões muitas vezes se manterá à margem de frases afirmativas sobre o que é verdade, optando, em vez disso, pela fórmula covarde e inútil “eis-aqui-o-que-dizem-os-dois-lados-e-eu-não-resolverei-os-conflitos”. Isso recompensa a desonestidade por parte de políticos e autoridades empresariais que sabem que podem confiar em repórteres “objetivos” para amplificar suas falsidades impunemente (ou seja, a reportagem se reduz a “X diz Y”, ao invés de “X diz Y e isso não é verdade”).

Pior ainda, essa restrição asfixiante de como é permitido aos repórteres se expressarem produz uma forma de jornalismo de autocastração que se torna ineficaz e maçante. A omissão de chamar a tortura de “tortura” porque as autoridades governamentais exigem que seja usado um eufemismo mais agradável, ou a equiparação preguiçosa de uma afirmativa que se pode provar verdadeira a uma que se pode provar falsa, esvazia o jornalismo de sua paixão, dinamismo, vitalidade e espírito.

E o pior de tudo: este modelo baseia-se num falso conceito. Os seres humanos não são máquinas guiadas pela objetividade. Intrinsecamente, todos percebemos e processamos o mundo através de prismas subjetivos. Qual o valor em fingir que não é assim?

A distinção relevante não é entre jornalistas que têm opiniões e os que não têm porque esta última categoria é um mito. A distinção relevante é entre jornalistas que divulgam honestamente suas suposições subjetivas e valores políticos e os que desonestamente fingem não ter nenhum deles ou os escondem de seus leitores.

Além do mais, todo jornalismo é uma forma de ativismo. Toda opção jornalística adota suposições altamente subjetivas – culturais, políticas ou nacionalistas – e serve aos interesses de uma ou outra facção. Em 2011, Jack Goldsmith, ex-membro do Ministério da Justiça de Bush, elogiou o que chamou de “o patriotismo da imprensa americana”, em referência a sua lealdade na proteção dos interesses e das políticas do governo norte-americano. Isso pode (ou não) ser algo nobre a se fazer, mas, definitivamente, não tem coisa alguma de objetivo: é bastante subjetivo e classicamente “ativista”.

Porém, em última instância, os únicos indicadores de jornalismo que deveriam ser importantes são a precisão e a confiabilidade. Pessoalmente, acho que divulgar honestamente valores subjetivos, ao invés de escondê-los, contribui para um jornalismo mais honesto e confiável. Mas não existe jornalismo algum – do mais estilisticamente “objetivo” ao mais descaradamente opinativo – que tenha algum valor a menos que se baseie em fatos, provas e informações verificáveis. A pretensão de que os jornalistas que opinam abertamente não podem produzir bom jornalismo é tão inválida quanto a pretensão de que aqueles que se restringem a um jornalismo não-opinativo não o podem fazê-lo.

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Caro Glenn,

Não penso que se trate de repórteres fingindo que não têm opiniões. Penso neles como repórteres, como uma disciplina ocupacional, interrompendo suas opiniões e deixando as provas falarem por si próprias. E é importante que isto não seja apenas um exercício individual, mas uma disciplina institucional, com editores encarregados de cobrar dos repórteres se deram pouca atenção a fatos ou argumentos contrários que os leitores queiram conhecer.

O negócio é o seguinte: uma vez que você declara publicamente suas “suposições subjetivas e valores políticos”, faz parte da natureza humana querer defendê-los e torna-se tentador omitir ou minimizar fatos, ou enquadrar o argumento em apoio a sua opinião declarada. E alguns leitores, cientes de que você escreve a partir de uma posição de esquerda, ou de direita, irão analisar sua reportagem com suspeitas justificadas. É claro que podem fazê-lo em quaisquer circunstâncias – descontando o que podem ter lido porque deu no “liberal” New York Times –, mas eu acho que a maioria dos leitores confia em nós porque percebe que é feita uma investigação e não se trata apenas de uma questão qualquer. (Uma vez vi uma pesquisa de opinião em que perguntavam aos leitores do Times se consideravam o jornal “liberal”. A maioria respondeu que sim. Depois perguntavam se o Times era “justo”. Uma maioria ainda maior disse que sim. Dou-me por satisfeito com isso.) Atualmente, trabalho no reino da opinião, mas como repórter e editor definia meu trabalho não em dizer aos leitores o que pensar, e sim, dizer-lhes o que precisam para decidir por si próprios. É claro que você tem razão quando diz que, às vezes, os resultados desse processo são menos emocionantes do que uma polêmica esquentada. Às vezes, um tratamento justo torna-se uma falsa equivalência ou parece um eufemismo. Mas é simplista dizer, por exemplo, que se você não usar a palavra “tortura” você está sendo reprovado num teste de coragem ou está escondendo uma maldade. É claro que considero o afogamento simulado tortura. Mas se um jornalista me fizer uma descrição intensa de um afogamento simulado, anotar a longa fila de regimes monstruosos que o praticaram e depois fizer uma exposição sobre o debate legal e se algum estatuto específico ou acordo internacional foi violado, não me importo se ele usa ou não a palavra. Sinto-me satisfeito – e totalmente preparado – para tirar minhas próprias conclusões.

Se Jack Goldsmith, o ex-advogado do governo Bush, tivesse elogiado a imprensa americana por, em suas palavras, “sua lealdade em proteger os interesses e as políticas do governo norte-americano”, eu discordaria, e muito, dele. Nós publicamos muitas matérias que desafiavam as políticas e os interesses pretendidos pelo governo. Mas não foi exatamente isso que disse Goldsmith. Ele diz que o Times e outros veículos importantes avaliam com seriedade os argumentos de que a publicação de algo pode pôr em perigo a segurança nacional – ou seja, poderia provocar a morte de alguém. Isso é verdade. Nós ouvimos tais reivindicações com respeito e depois tomamos uma decisão. Se não formos convencidos, publicamos, às vezes sob ferozes objeções por parte do governo. Se formos convencidos, esperamos, ou seguramos a matéria, ou omitimos detalhes. Enfrentei uma decisão dessas pela primeira vez em 1997, quando era editor do noticiário internacional e um repórter soube de um conflito entre a Rússia e a Geórgia, ex-República soviética, sobre o que fazer com um esconderijo de urânio altamente enriquecido após o colapso da União Soviética. O conflito era uma notícia interessante. Mas quando o repórter foi checar, as reservas armazenadas não tinham segurança alguma e estavam à disposição de qualquer terrorista interessado em construir uma bomba suja. Pediram-nos que segurássemos a matéria até que o material fosse protegido e guardado em segurança – foi o que fizemos. Não se tratou de uma ordem.

Qual seria, então, sua política sobre publicar informações que algumas pessoas diriam que poriam em risco a segurança nacional? (Compreendo que não se trata de uma questão completamente hipotética) Você ouviria os argumentos deles?

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Caro Bill,

Por que os repórteres que escondem suas opiniões seriam menos tentados pela natureza humana a manipular suas reportagens do que aqueles que são honestos sobre suas opiniões? Na verdade, esconder as opiniões dá ao repórter uma maior latitude para manipular sua reportagem, pois o leitor desconhece as opiniões escondidas e, portanto, não tem como avaliá-las.

Por exemplo, eu não sabia até muito depois do fato que John Burns [correspondente do Times] tinha opiniões favoráveis ao ataque ao Iraque. Ele não só reconheceu, em 2010 e 2011, que não conseguiu antecipar a carnificina maciça e a destruição que a invasão provocaria, mas também descrevia os soldados norte-americanos invasores como “anjos salvadores” e “libertadores”. Isso o torna um ativista, e não um jornalista? Acho que não. Porém, enquanto leitor, eu realmente gostaria de ter sabido de suas opiniões escondidas na época em que fazia reportagens sobre a guerra para que pudesse levá-las em consideração.

Acredito que seja muito difícil argumentar que o tom ostensivamente “objetivo” exigido pelos grandes veículos jornalísticos constrói a confiança pública, considerando a avaliação muito baixa que o público faz dessas instituições de mídia. Muito mais do que preocupações com parcialidade ideológica, o colapso da credibilidade da mídia tem origem em coisas como ajudar o governo norte-americano a disseminar inverdades que levaram à guerra do Iraque e, de uma maneira mais geral, uma flagrante subserviência ao poder político: patologias exacerbadas pela proibição aos repórteres de divulgarem declarações claras e definitivas sobre as palavras e ações de autoridades políticas pelo medo de serem acusados de parcialidade.

Quanto a levar em conta os perigos que se colocam à vida de inocentes antes da publicação, ninguém questiona que os jornalistas o façam. Mas não acho que as vidas de inocentes americanos tenham um peso maior se comparadas às vidas de não-americanos, nem sinto alguma lealdade especial ao governo norte-americano se comparada à de outros governos quando se trata de decidir o que publicar. Quando Goldsmith elogiou o “patriotismo” da mídia americana, ele se referia aos veículos jornalísticos norte-americanos que dão uma proteção especial às opiniões e aos interesses do governo norte-americano.

Acho que se pode argumentar que é isso que deveria ser. Mas seja qual for a mentalidade, certamente não é “objetiva”. É nacionalista, subjetiva e ativista, o que é meu principal argumento: todo jornalismo é subjetivo, assim como uma forma de ativismo, mesmo que se tente fingir que não é.

Não me oponho ao processo pelo qual é permitido à Casa Branca opinar com antecedência sobre a publicação de segredos comprometedores.

Na verdade, o pessoal do WikiLeaks, que defende a transparência radical, foi à Casa Branca em busca de orientações antes de publicar os textos sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão, mas a Casa Branca recusou-se a responder e depois teve a temeridade de criticar o WikiLeaks por publicar material que disse que deveria ter sido retido. Esse processo que antecede a publicação é simultaneamente delicado, do ponto de vista jornalístico (os jornalistas devem coletar o maior número possível de informações relevantes antes de tomar a decisão de publicar), e legalmente inteligente (qualquer advogado dirá, em nome da Lei de Espionagem, que essa consulta pode ajudar a provar a intenção jornalística, ao publicar esse material). No que se refere a todas as matérias que escrevi sobre a NSA – não só para o Guardian, mas para veículos pelo mundo todo –, a Casa Branca foi informada pelos editores antes da publicação (embora na grande maioria dos casos suas exigências de que as informações fossem eliminadas tenham sido descartadas devido à inexistência de motivos específicos a favor da eliminação).

Minha objeção não é ao processo propriamente dito, mas às instâncias específicas pelas quais ele leva à eliminação de informações que deveriam ser públicas. Sem ressentimentos, acho que a decisão do Times, em 2004, de segurar a matéria de [James] Risen e [Eric] Lichtblau sobre a NSA por exigência da Casa Branca no governo Bush foi uma das mais escandalosas dessas instâncias, mas há muitas outras.

Fundamentalmente, vejo o valor do jornalismo com uma dupla missão: informar o público com dados precisos e vitais e sua capacidade única de proporcionar um controle crítico àqueles que estão no poder. Quaisquer regras não escritas que interfiram com um desses enunciados são por mim consideradas como a antítese do verdadeiro jornalismo e deveriam ser ignoradas.

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Caro Glenn,

“Nacionalista”, sua palavra para a “mentalidade” da imprensa americana, é um rótulo com uma carga repugnante. É o lado escuro do (igualmente superficial) “patriótico”. Sugere fidelidade cega e chauvinismo. Presumo que você não a use por acaso. E eu não posso, casualmente, deixar passar.

O New York Times é um jornal global em sua coleta de informações (31 sucursais fora dos Estados Unidos), em sua equipe (para quem não sabe, nosso principal executivo é inglês) e especialmente em sua audiência. Porém, a partir de suas raízes, é uma empresa americana. Essa identidade traz benefícios e exige obrigações. Os benefícios incluem uma Constituição e uma cultura que, comparadas à maior parte do mundo, favorecem a liberdade de imprensa. (É por esse motivo que seus editores, no Guardian, nos procuraram mais de uma vez como parceiros em projetos jornalísticos delicados – procurando o abrigo da nossa Primeira Emenda e da Lei de Segredos Oficiais britânica.) As obrigações incluem, acima de tudo, cobrar a responsabilidade do governo quando este viola nossas leis, trai nossos valores ou não corresponde às suas responsabilidades. Gastamos uma considerável energia jornalística expondo a corrupção e a opressão em outros países, mas a responsabilidade começa em casa.

Assim como qualquer outro empreendimento dirigido por seres humanos, o nosso não é perfeito e às vezes nos deixa decepcionados. Os críticos à esquerda, incluindo você, ficaram indignados quando souberam que nós seguramos a matéria sobre a espionagem da NSA por mais de um ano, até eu me dar por satisfeito de que o interesse público era mais importante do que qualquer potencial prejuízo à segurança nacional. Os críticos à direita ficaram ainda mais furiosos quando, em 2005, publicamos a matéria. Pessoas decentes podem discordar de tais decisões – publicar ou não publicar. Mas essas avaliações foram o resultado de um cálculo longo, difícil e independente, pesando riscos e responsabilidades – e não por “lealdade ao governo norte-americano”.

A propósito, já que você mencionou o WikiLeaks, uma de nossas principais preocupações ao editar esses documentos como matérias em 2010 foi a de evitar que informantes inocentes corressem riscos – não cidadãos americanos, mas dissidentes, acadêmicos, defensores de direitos humanos ou civis comuns cujos nomes tivessem sido mencionados nos telegramas confidenciais de embaixadas no exterior. A atitude do WikiLeaks quanto a essa questão foi de uma indiferença cruel. Segundo David Leigh, principal responsável pela investigação da matéria para o Guardian, Julian Assange disse: “Se eles morrerem, é porque merecem.” (Assange nega ter dito isso, mas os antecedentes de David Leigh concedem-lhe uma credibilidade considerável) Eric Schmidt, executivo do Google, afirma que Assange lhe disse que teria preferido que os documentos fossem publicados sem edição. Em várias ocasiões, eu disse que Assange e o WikiLeaks deveriam gozar da mesma liberdade de imprensa que o New York Times. Porém, não devemos fingir que eles têm o mesmo senso de responsabilidade.

Um novo assunto?

Pierre Omidyar, seu novo empregador, acha que viu o futuro do jornalismo e que este se parece com você. Numa entrevista à NPR, Omidyar disse que “a confiança nas instituições está diminuindo” e agora “as audiências querem conectar-se com personalidades”. Portanto, ele passa a construir uma constelação de estrelas, solistas “movidos a paixão” e investigadores militantes. Sei que você não pode falar por Omidyar, mas tenho algumas perguntas sobre como você vê este novo mundo.

Em primeiro lugar, tornou-se um clichê de nosso negócio/profissão/ofício que os jornalistas devem se construir a si próprios como “marcas”. Mas o jornalismo – principalmente a coisa mais difícil, como o jornalismo investigativo – beneficia-se imensamente de apoio institucional, inclusive de uma equipe técnica que sabe como tirar o máximo de um banco de dados, editores e checadores que fortalecem as matérias, designers gráficos que ajudam a tornar compreensíveis assuntos complicados e, por último, advogados que sabem tudo sobre a legislação da liberdade de expressão da Primeira Emenda. Na cobertura do caso Snowden, você trabalhou dentro da estrutura institucional do Guardian e, por algum tempo, com a do Times. O que é que é diferente no novo projeto? É apenas uma instituição jornalística com outro nome?

Em segundo lugar, numa entrevista com meu velho amigo David Cay Johnston, você disse que a cobertura de governos e outras grandes instituições está em vias de ser radicalmente mudada devido à onipresença do conteúdo digital. Os governos e as empresas dependem de amplos tesouros de informação. Só é necessário, você disse, acesso e uma consciência pesada para criar um Edward Snowden ou um Bradley Manning. Mas me parece que também é necessária outra coisa: uma disposição de arriscar tudo. Manning está cumprindo uma pena de 35 anos de cadeia em decorrência de divulgações feitas pelo WikiLeaks, e Snowden tem pela frente uma vida no exílio. As mesmas ferramentas digitais que tornam fácil um vazamento também tornam difícil evitar que os responsáveis sejam apanhados. Isso seria um motivo, a meu ver, para que o esmagador predomínio das reportagens investigativas seja de repórteres que cultivaram fontes confiáveis durante meses, ou anos, e não de privilegiados que, de repente, decidem confiar em alguém com quem nunca se encontraram e, com um pen drive, passam-lhe uma porção de segredos. Você realmente acha que Snowden e Manning representam o futuro do jornalismo investigativo?

E, em terceiro lugar, será esse novo projeto de Pierre Omidyar uma monocultura política ou você espera que existam Glenn Greenwalds de direita na diretoria?

De volta a você.

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Caro Bill,

Para compreender o que quero dizer com “nacionalista”, examinemos o exemplo que discutimos: o não-uso pelo NYT da palavra “tortura” para descrever técnicas de interrogação da era Bush. Você diz que o uso desta palavra era desnecessário porque as técnicas estavam descritas em detalhes. Tudo bem. Mas o NYT (assim como outros veículos de mídia) usou, sim, a palavra “tortura”, sem reservas, para as mesmas técnicas, quando utilizadas por países adversários dos Estados Unidos. É isso o que quero dizer com “nacionalismo”: fazer opções jornalísticas para ficar bem-comportado e defender os interesses do governo norte-americano.

Não me refiro ao termo de forma pejorativa (pelo menos, não completamente), mas apenas descritiva. Ele demonstra que todo jornalismo tem uma opinião e um conjunto de valores que defende, mesmo que sejam feitos esforços para escondê-lo.

Sobre a diferença entre o WikiLeaks e o NYT: O Guardian (juntamente com o NYT) tem uma inimizade amarga e prolongada com Assange (agora terminaram de se beneficiar de seus documentos), portanto eu não defenderia sua credibilidade intrínseca em discussões sobre o que foi ou não foi dito em particular. De tudo o que vi, nem Assange nem o WikiLeaks têm o mais remoto desejo de pôr em perigo pessoas inocentes. Pelo contrário: eles tentaram infatigavelmente editar os nomes de inocentes e procuraram a contribuição da Casa Branca antes de publicar os documentos (o que foi indesculpavelmente recusado). E também, a única vez em que um tesouro de documentos não editados foi divulgado foi, ironicamente, quando o jornalista que você citou (ninguém associado ao WikiLeaks) publicou a senha do arquivo em seu livro.

E agora, o aspecto mais amplo: mesmo se presumíssemos, hipoteticamente, que a transparência mais agressiva do WikiLeaks poderia eventualmente resultar em divulgações em excesso (uma proposta que recuso), a postura mais simpática ao governo do NYT e de veículos semelhantes muitas vezes produz um jornalismo bastante prejudicial. Não foi o WikiLeaks que manipulou falsas denúncias oficiais sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein e sua aliança com a al-Qaeda na primeira página sob a aparência de uma “notícia” para ajudar a começar uma guerra horrenda. Não é o WikiLeaks que rotineiramente oferece o anonimato às autoridades norte-americanas para permitir-lhes que disseminem mitologias de uma liderança gloriosa ou calúnias bastante tóxicas de críticos do governo sem qualquer responsabilidade.

Não é o WikiLeaks que imprime acusações incrivelmente incendiárias sobre informantes internos do governo sem um mínimo de provas. E não foi o WikiLeaks que permitiu que o povo norte-americano reelegesse George Bush embora sabendo, mas escondendo, que ele usava escutas telefônicas clandestinas exatamente da mesma maneira proibida pelo código penal.

Quanto ao novo projeto que vimos construindo com Pierre Omidyar, ainda estamos desenvolvendo o que ele virá a parecer, como será estruturado etc. Portanto, minha capacidade de responder a algumas de suas perguntas é limitada. Mas posso falar sobre algumas questões.

Acreditamos, com certeza, que editores fortes e experientes são fundamentais para o bom jornalismo e pretendemos ter bastantes deles. Os editores são necessários para garantir o mais alto nível de precisão factual, para checar reivindicações importantes e para ajudar os jornalistas nas opções, de forma a evitar um prejuízo aos inocentes.

Mas eles não são necessários para impor regras de estilo obsoletas, ou sufocar a voz única e a paixão dos jornalistas, ou impedir quaisquer declarações taxativas quando autoridades do primeiro escalão mentem, ou determinar eufemismos exigidos pelo governo ao invés de termos claros e factuais, ou conceder declarações oficiais, ou requisitos oficiais, para uma eliminação com status superior. Resumindo, os editores deveriam estar ali para autorizar e tornar possível um jornalismo altamente factual, agressivo, de confronto, e não para servir de barreira para o neutro ou para eliminar o jornalismo.

Pretendemos tratar as reclamações das facções mais poderosas com ceticismo, e não com reverência. As afirmações oficiais são nosso ponto de partida para investigar (“A autoridade A disse hoje X, Y e Z; vamos ver se isso é verdade”), e não o evangelho em torno do qual construímos nossas narrativas (“X, Y e Z, diz a autoridade A”).

Quanto às fontes, não compreendo a distinção que você pensa estar fazendo entre Snowden e as fontes mais tradicionais.

Snowden procurou jornalistas que trabalham com alguns dos jornais mais respeitados do mundo. Ninguém jogou pen drives em nosso colo: nós trabalhamos por um período bastante longo para construir uma relação de confiança e desenvolver uma estrutura que nos permitisse divulgar esses documentos. Em que isso é diferente da decisão de Daniel Ellsberg de levar os Papéis do Pentágono para o Times no início da década de 70?

Dito isto, você levanta uma questão interessante e importante, sobre os perigos que correm as fontes. Mas não são apenas pessoas como Manning e Snowden que enfrentam processos e longas penas de prisão. Informantes norte-americanos que procuraram veículos de mídia mais tradicionais – como Tom Drake e Jeffery Sterling – também enfrentam acusações de delitos por parte de um governo que, como disse o ex-conselheiro de seu jornal James Goodale, tem sido mais vingativo ao atacar o processo de coleta de informações do que qualquer outro desde Richard Nixon.

E, mesmo jornalistas neste processo, como James Risen, vencedor de um prêmio Pulitzer pelo seu jornal, enfrentam uma ameaça concreta de prisão.

O clima de medo que foi deliberadamente cultivado significa, como diz Jane Mayer, da New Yorker, que o processo de coleta de dados foi “paralisado”. Muitos dos repórteres do Times que cobrem segurança nacional, como Scott Shane, vêm fazendo advertências semelhantes: que as fontes agora têm medo de usar os meios tradicionais de trabalho com repórteres devido à agressividade do governo Obama. É óbvio que a vigilância onipresente faz parte desse problema, uma vez que a coleta de todos os dados estatísticos torna quase impossível que uma fonte e um jornalista se comuniquem sem o conhecimento do governo.

E quanto às novas tecnologias para melhorar a privacidade, sim, acho que informantes corajosos e inovadores como Manning e Snowden são fundamentais para sair um pouco desta escuridão e conseguir um pouco de luz. A denúncia de coisas feitas secretamente por um mau governo não deveriam exigir uma coragem extrema ou a disposição de ir para a prisão por décadas, ou mesmo pela vida inteira. Mas exigem. E isso é um problema enorme para a democracia, contra o qual todos os jornalistas deveriam lutar unidos. Reivindicar uma liberdade de imprensa básica nos Estados Unidos é um impulso importante para o nosso novo projeto.

Quanto à questão da homogeneidade ideológica do nosso projeto, a resposta é “definitivamente não”. Consideramos bem-vinda e queremos qualquer pessoa dedicada ao verdadeiro jornalismo de confronto, independente de sua localização no espectro político, e até já falamos com jornalistas conservadores com essas características: verdadeiros conservadores, e não a versão da Costa Leste de “conservadores” como David Brooks. A ideologia que nos guia é um jornalismo de responsabilidade baseado numa precisão rigorosamente factual.

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Caro Glenn,

Seu aparente desprezo por David Brooks é revelador. Presume-se que o que o desqualifica de sua categoria de “verdadeiros conservadores” é que ele põe a razão acima da paixão e às vezes encontra um meio-termo. Assim como Lênin desprezou os liberais, como o Tea Party detesta os republicanos moderados, você parece reservar seu desdém mais ferino para a moderação, para a concessão.

É claro que concordamos que a simpatia do atual governo pela Lei de Espionagem e sua disposição para mandar para a cadeia repórteres que protegem suas fontes criaram um clima hostil para qualquer tipo de reportagem investigativa. Concordamos que isso é deplorável e ruim para a democracia.

Também há outras coisas em que concordamos, mas o objetivo desta troca de e-mails não era uma busca por pontos em comum. Portanto, antes de me despedir, gostaria de voltar uma vez mais àquilo que penso que possa ser nosso desacordo mais importante.

Você insiste que “todo jornalismo tem uma opinião e um conjunto de interesses que defende, mesmo que sejam feitos esforços para escondê-lo”. E portanto, não faz sentido tentar ser imparcial. (Eu evito a palavra “objetivo”, que sugere um estado perfeito e mítico da verdade.) Além do mais, em todos os casos em que a grande mídia está envolvida, você está convencido que você, Glenn Greenwald, sabe o que é controlar o “conjunto de interesses”. Nunca algo é tão inocente quanto o sentido de jogo limpo, ou uma determinação que deixe o leitor decidir; deve ser uma lealdade servil a forças políticas poderosas.

Acredito que a imparcialidade é uma aspiração que vale a pena em jornalismo, mesmo que não seja plenamente alcançada. Acredito que, na maioria dos casos, ela o leva mais próximo da verdade porque impõe uma disciplina de testar todas as suposições, inclusive a sua própria. Essa disciplina não aparece de forma natural. Acredito que seja menos provável a um jornalismo que começa a partir de uma predisposição publicamente anunciada alcançar a verdade, assim como menos provável que seja convincente para os que ainda não foram convencidos. E, sim, é mais provável que jornalistas manipulem as provas em apoio a uma opinião declarada do que em apoio a uma que é guardada em privado – devido ao orgulho.

Corretamente, você assinala que essa busca por equidade é um padrão relativamente novo no jornalismo americano. Um leitor não tem que recuar muito na data dos arquivos – inclusive os arquivos deste jornal – para encontrar o tipo de jornalismo opinativo e aberto que você endossa. É a “alma” por que você implora. Mas para um ouvido moderno muitas vezes parece um sermão – e suspeito.

Acho que a necessidade de um jornalismo imparcial é maior do que nunca porque agora vivemos num mundo de mídia com base na afinidade, onde cidadãos podem e constroem câmaras de som de suas próprias crenças. É demasiado fácil sentir-se “informado” sem nunca encontrarmos informação que desafie nossos preconceitos.

Um pouco atrás, você assinalou que pesquisas mostram que o público americano tem uma opinião ruim da mídia jornalística. Você declarou – com base em alguma prova que desconheço – que essa queda de respeito resulta de uma “subserviência flagrante ao poder político”. Será? Me parece mais plausível que a erosão do respeito pela mídia americana – uma categoria que inclui desde o meu jornal ao USA Today, a Rush Limbaugh, ao National Enquirer, aos noticiários sensacionalistas locais – possa ser explicada pelo fato de que boa parte dela é trivial, superficial, sensacionalista, redundante e, sim, ideológica e polêmica.

Ofereço-lhe a última palavra e depois podemos deixar o campo para comentários, se alguém chegou até aqui.

Glenn, desejo-lhe sorte no novo projeto e espero que inspire mais bilionários a porem dinheiro em jornalismo. Ofereço-lhe um conselho não solicitado. Muito pouco do que você disse sobre o Times nesta troca de e-mails não foi dito antes nas páginas do próprio Times, ainda que numa linguagem menos pesada. A autocrítica e as correções – e tive uma experiência considerável com ambas – não são divertidas, mas são tão saudáveis para o jornalismo quanto a independência e a reverência pela verdade. A humildade é tão cara quanto a paixão. Portanto, meu conselho é: “Aprenda a dizer: ‘Nós erramos’.”

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Caro Bill,

Só umas últimas, rápidas observações.

Meu “desprezo” por David Brooks baseia-se em seus anos de extremo aplauso e veneração por uma classe política de elite que pouco produziu além de fracassos desprezíveis e corrupção. Não vejo absolutamente nada de moderado nele. Eu apenas assinalava que, se você se orgulha de contratar conservadores para escrever em seu jornal, ele dificilmente representaria esse movimento.

Acho que há um jogo semântico na forma que você escolheu para resumir nosso debate. Minha opinião de jornalismo exige, decididamente, uma adesão justa e rigorosa aos fatos. Mas acho que esses valores são promovidos ao sermos honestos com nossas perspectivas e suposições subjetivas, ao invés de nos convertermos na voz de deus, num tom não-opinativo que falsamente implica que os jornalistas se encontram acima das opiniões normais e das lealdades a facções que atormentam o não-jornalista e o “temido” ativista.

Inseridos na perspectiva institucional e nas metodologias de reportagem do New York Times estão todos os tipos de suposições questionáveis, subjetivas, políticas e culturais sobre o mundo. E, com algumas exceções notáveis, o Times, por seu projeto ou por qualquer outro motivo, serve há muito tempo aos interesses do mesmo conjunto da elite e das facções políticas. Suas reportagens não são menos “ativistas”, subjetivas ou não-opinativas do que as vozes da nova mídia que o jornal às vezes, por condescendência, menospreza.

Obrigado pelos desejos de boa sorte e pela troca de provocações. Gosto disso.

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Ex-editor-executivo do New York Times, hoje Bill Keller é colunista do diário