Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um argumento em defesa da liberdade das biografias

Os argumentos contrários a restrições com relação à escritura e circulação de biografias “não autorizadas” têm se valido de um valor estruturante da nossa forma civilizatória: o princípio da liberdade de expressão. Com efeito, o princípio é pétreo: sua abolição implicaria o risco de dissolução daquilo que o grande teórico social alemão, Norbert Elias, definiu como o processo civilizador. Os argumentos mais restritivos, por sua vez, valem-se de cláusula em nada estranha ao mesmo processo: os princípios da privacidade e da proteção dos indivíduos inserem-se, de modo pleno, no mesmo catálogo de valores que conformaram a nossa forma de vida. Catálogo também composto pelo princípio da liberdade de expressão.

É tão fácil como tentador opor essas duas ordens de princípios, uma à outra, como se representassem formas civilizatórias distintas. Na verdade, ambas decorrem de mesma matriz: a fixação no século 17, a partir da obra de pensadores tais como John Locke, de direitos subjetivos, ou seja, direitos que decorrem não de circunstâncias particulares, mas de um modo próprio de conceber a natureza humana como constituída pelo direito natural – e, portanto, não circunstancial – à liberdade, incluído neste termo tanto vontades de expressão como desejos de proteção.

Liberdade de expressão e direito à privacidade são horizontes normativos. Como tal, são marcados por um inevitável grau de generalidade. As circunstâncias da vida e as formas do direito positivo definirão, com contornos mais precisos, o que ambas podem significar na vida prática e no horizonte das experiências históricas e sociais dos seres humanos. O desafio prático, inerente ao caráter genérico mencionado, consiste em grande medida em regular conflitos possíveis entre ações humanas que se apresentam como fundadas em cada um desse princípios em particular.

O tema das biografias, se tratado exclusivamente à luz da oposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade, parece pretender retirar desses valores corolários automáticos, de aplicação indisputada. O filósofo liberal contemporâneo Isaiah Berlin, certa feita, declarou que não há garantia de que os bons valores e princípios sejam automaticamente compatíveis. Há que trabalhar com criatividade para que aquelas orientações normativas decantem na experiência social.

A defesa da liberdade para as biografias, posição que tenho a honra de apresentar no âmbito da Suprema Corte de meu país, não pode, por certo, dispensar a âncora normativa do princípio da liberdade de expressão. O que pretendo aqui fazer é acrescentar a tal patrimônio valorativo considerações de natureza distinta, porém convergente, que, a meu juízo, podem fortalecer a posição já manifesta pela exma. sra. ministra da Cultura, Marta Suplicy.

Gostaria de proceder por meio da apresentação de três argumentos, a saber: um argumento formal; um argumento histórico; e um argumento antropológico e hermenêutico. O objetivo de cada um dos argumentos é o de indicar o quanto a alternativa de estabelecer restrições à inquirição biográfica contraria traços básicos de nossa forma civilizatória.

1. Argumento formal: o que são “biografias”?

À primeira vista, a pergunta soa como bizarra. Afinal, todos sabemos o que estamos a ler quando lemos uma biografia: uma biografia, para defini-la em termos minimalistas, é um gênero de escritura devotado à tarefa de contar uma vida. Assim definidas, “biografias” configuram um gênero distinto das demais formas de expressão escrita. Não obstante, outro recorte é possível. Além de pensar biografias como gênero próprio, é possível e necessário imaginar o exercício biográfico como recurso cognitivo, não limitado ao gênero estrito das biografias.

Por razões que ficarão mais claras no correr da apresentação do argumento seguinte, as principais linhagens narrativas no campo das ciências humanas – particularmente no da história – valem-se de recursos biográficos, mesmo em obras não classificáveis como biografias. O clássico livro do historiador italiano Carlo Ginzburg, por exemplo, intitulado O queijo e os vermes dificilmente pode ser considerado uma “biografia”, mas sua estrutura narrativa e metodológica repousa na caracterização biográfica do moleiro Menocchio, um dissidente/herege, cuja estrutura mental ajuda a compreender o imaginário social e simbólico da alta Idade Média italiana. Ou seja, a inquirição biográfica, como recurso cognitivo, tornou-se ferramenta essencial para investigações no campo das ciências humanas. A razão principal é de fácil enunciação: as ciências humanas ocupam-se da ação humana e esta, de modo necessário, materializa-se em decisões, atitudes, crenças, iniciativas, etc., que mobilizam indivíduos reais, cujas vidas tornam-se, assim, relevantes para a construção de hipóteses de sentido.

Desse modo, a decisão a respeito de como tratar as biografias, do ponto de vista do direito positivo, poderá ter efeitos não apenas sobre um gênero específico e isolado, mas sobre toda uma tradição de inquirição a respeito do que somos em termos civilizacionais.

A despeito da existência de teorias da história e da sociedade que deflacionam o papel dos sujeitos individuais, o melhor da historiografia sempre procurou associar o entendimento de variáveis de longa duração à atenção ao âmbito nervoso e imprevisível da ação humana individual.

2. Argumento histórico: ação humana, sujeitos, indivíduos

A inquirição e a curiosidade biográficas estão fortemente inscritas na nossa forma civilizatória. Tal inclinação não se deve, apenas, a apetites bisbilhoteiros, mas ao reconhecimento dos efeitos de uma grande mutação ocorrida no início da modernidade. A partir de fins da Idade Média, deixamos de nos representar como rebanho cujo destino fora fixado por potências inescrutáveis. Essa visão a respeito da inescrutabilidade dos comandos que dirigem os humanos é muito antiga. O filósofo contemporâneo, Alasdair MacIntyre, em livro luminoso (Justiça de quem? Qual racionalidade?), escreveu capítulo brilhante a respeito da psicologia da ação dos heróis homéricos, para revelar um cenário no qual a ação humana era regulada pelo que tinha que ser feito, independente do escrutínio individual do agente. Para a Idade Média, dissidentes à parte, a psicologia da ação humana constituiu-se como capítulo da teologia. Em suma, dos antigos e dos medievais, com magníficas exceções, herdamos uma teoria sobre o mundo social e histórico na qual a agência humana pouco conta, salvo quando se trata de pensar o mal e o desvio.

A Modernidade, ao desfazer-se de tal herança, tem como um de seus capítulos propiciatórios o desenho de Adão, apresentado pelo humanista Pico della Mirandola, no século 15, em sua “Oração da Dignidade”: um ser posto no mundo por Deus, sem qualquer finalidade pré-estabelecida, para que possa livremente estabelecer as suas próprias. Pico, ao lado de outros humanistas italianos e, mais tarde, suplementado pela obra de Michel de Montaigne, preparou a sensibilidade cognitiva da época para uma representação da história humana como protagonizada por uma variedade incontável de ações individuais, a despeito da força inercial das tradições. Por conseguinte, para a epistéme moderna, fazer biografias constitui um exercício de elucidação da experiência dos humanos. O suporte filosófico dessa nova atitude será progressivamente fixado, a partir do século 17, em um trajeto iniciado tanto pela tradição filosófica racionalista como por seus rivais empiristas. O tema do sujeito apresenta-se por toda parte. No campo da pintura, a proliferação de retratos e auto retratos reforça tal impressão.

Ressalta o retrato de Federico de Montefeltro, feito por Piero della Francesca, no qual, o nobre, de perfil, é representado em destaque com relação à paisagem física e social sobre a qual tem jurisdição. Não sendo uma biografia, em sentido estrito, a manifestação pictórica procura representar uma vida.

O legado da centralidade do sujeito individual, posta pelos modernos, reside no fato de que, desde então, não mais deixamos de falar em indivíduos quando pensamos a história, ainda que procuremos acrescentar dimensões estruturais e de longa duração.

Biografias, nesse sentido, dão a ver suas “vítimas”, mas também o contexto no qual atuam. As melhores operam nessa chave. Restrições, portanto, não apenas escondem ou camuflam a ação individual. Elas criam barreiras ao entendimento de épocas e de tendências. Um exemplo pátrio e recente pode ajudar a estabelecer a força desse argumento: a excelente biografia do ex-presidente da República João Goulart, realizada pelo historiador Jorge Ferreira. Um exercício que, ao mesmo tempo em que ilumina momentos cruciais da história recente do país, redime e exibe o papel e a atuação de um grande brasileiro, retirando-o do gueto preconceituoso no qual o atiraram analistas de distintas persuasões, tanto à direita como à esquerda.

3. Argumento antropológico e hermenêutico: o princípio da variedade e a centralidade da interpretação

Este argumento tem parte com o anterior. O tema da variedade humana, posto pelos modernos, em sua vertente cética ensina-nos que nenhum de nós possui elementos de elucidação verdadeira a respeito da história em geral e nossas vidas em particular. Nossos enunciados são prováveis e inapelavelmente interpretativos. Os humanos são animais que interpretam.

Na verdade, a origem deste argumento é mais antiga. Encontramos em Aristóteles, na Política, a ideia dos humanos como “animais que falam”. Mais adiante, na Ética a Nicômaco, encontramos que os humanos, por falarem, são animais que “deliberam”. E sobre o quê exatamente deliberamos? Sobre assuntos sobre os quais não sabemos, não temos respostas. Sobre eles nada dizem a natureza, o acaso e os deuses. Somos nós, em nossa precária condição cognitiva, que somos obrigados a lidar com temas que não admitem solução automática. Os recursos para tal são os da argumentação e da interpretação. É o que há.

O postulado da variedade humana, acolhido pelos modernos, recepciona, assim, o tema da inevitabilidade da interpretação. Não há verdades universais e auto-evidentes. O que pode compensar tal orfandade é a capacidade humana de emissão de juízos, sustentados em versões de mundo, em interpretações. É esta a base antropológica do princípio da liberdade de expressão. Longe de ser um capricho de filósofos políticos, o princípio decorre da dispersão dessa imagem: os humanos interpretam o mundo por meio de incontáveis jogos de linguagem.

Nada mais natural que sejamos “vítimas” potenciais – ou algozes – de tais artes de interpretação. Jacob Buckhardt interpretará, no século 19, o Renascimento, por meio do recurso biográfico sobre a vida dos tiranos. Antes dele, Boswell escrevera a biografia do século 18 inglês, ao contar-nos a vida do Dr. Johnson. A liberdade desses exercícios ajudou a configurar o mundo no qual vivemos.

Restrições ao exercício e à inquirição biográfica são, pois, impedimentos não apenas à liberdade de expressão, mas ao seu fundamento antropológico, contido na ideia de que os humanos são animais que interpretam. Restrinja-se tal liberdade, e uma forma de vida terá seu curso alterado.

Conclusões

O que tememos nas biografias? Mais do que a revelação de aspectos factuais desairosos, ou de sua vulnerabilidade a profissionais da mentira, há que reconhecer que o que mais amedronta são os efeitos da interpretação. Em outros termos, o medo da interpretação procura socorrer-se no direito positivo para fixar impedimentos, propiciar recursos dissuasores e possibilidades de retaliação. Descontado aquilo que, de um modo óbvio, pode ser isolado e neutralizado pelo direito positivo – mentira, difamação, calúnia etc… –, parece caber ao grande resíduo inimputável em termos legais – as artes da interpretação – a prerrogativa de exercer efeitos de amedrontamento. O menos que se pode dizer é que tal sentimento é genuíno: praticamos intepretações sobre os outros, tanto quanto tememos interpretações dos outros sobre nós mesmos. De minha parte devo dizer, que não ficaria incólume se alguém me comunicasse que está a escrever minha biografia. Há, portanto, sobretudo para os vivos, o que poderíamos designar como uma legítima agonia do biografado.

Mas, temo que aqui o Direito seja de pouca valia. O sonho hegeliano que nos fez crer que todos os dilemas particularistas da sociedade civil têm sua solução necessária e universal no plano do Direito não mais subsiste. Da mesma forma, aprendemos a abrigar hoje a ideia de que o espaço público, para além do Direito, é configurado pela esfera da moralidade. Seria um progresso se uma ética das biografias, compartilhada por autores e editores, aos poucos se consolidasse e cuidasse daquilo que não é claro e distinto do ponto de vista do Direito.

O Ministério da Cultura, por vocação institucional e orientação política própria, lida diuturnamente com o grande tema da invenção cultural, em todas as suas formas. Sua missão é cuidar deste patrimônio e definir políticas para sua expansão. O principal recurso simbólico para exercer tal missão é o compromisso com a liberdade de criação, em todas as suas formas. Que o Presidente da Biblioteca Nacional tenha sido indicado pelo Ministério da Cultura, para falar nesta ocasião, isto não constitui um acaso. A maior casa dos livros do país proporciona um excelente ponto de partida para a defesa da liberdade do espírito criador.

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Renato Lessa é presidente da Biblioteca Nacional