Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ameaça da NSA à liberdade de expressão na rede

Meses após as divulgações feitas por Edward Snowden, a abrangência da violação da privacidade de nossas comunicações, assim como outras extensas áreas de nossas vidas, pela extraordinária vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA), tornou-se amplamente visível. Muito menos discutida, entretanto, é a ameaça global que a espionagem da NSA representa para a liberdade de expressão na internet.

A bisbilhotice aparentemente sem limites da NSA em nossos dados eletrônicos baseia-se numa visão estreita de nosso direito à privacidade. Como já descrevi aqui mesmo, essas intromissões são facilitadas por vários atalhos na atual legislação norte-americana. Por exemplo, a lei reconhece um interesse privado no conteúdo de nossas comunicações, mas não naquilo que se chamam metadados, os detalhes eletrônicos sobre as pessoas com quem nos comunicamos, sobre aquilo que pesquisamos online e para onde vamos. O motivo fundamental, tal como consta da decisão da Suprema Corte em 1979, é de que não temos interesse privado nos números de telefone que discamos porque os compartilhamos com a companhia telefônica, embora o tribunal pudesse simplesmente deliberar que a companhia telefônica tem um dever de confiança de respeitar a privacidade de seus clientes.

Além do mais, no que se refere ao aspecto mais frágil de sua autoridade legal, a NSA presume que a simples coleta de nossas informações não representa invasão de nossa privacidade, até que essas informações sejam examinadas ou “questionadas”. Usando uma metáfora superficial, como a necessidade de um palheiro para achar uma agulha, a NSA afirma que tem a liberdade de vasculhar aquele palheiro sem qualquer obstáculo. É como se a NSA montasse câmeras de vídeo em nossos quartos de dormir e nos assegurasse que não tínhamos que nos preocupar até que o filme fosse examinado.

Yahoo contribuiu para condenação de jornalista

E, para a consternação do resto do mundo, a legislação norte-americana sobre vigilância não reconhece quaisquer direitos à privacidade a cidadãos não-americanos fora dos Estados Unidos, embora muitas de suas comunicações passem pelos Estados Unidos e o governo norte-americano tenha condições de coletar grande parte das que não passam. Recentemente, foi dada bastante atenção ao monitoramento feito pela NSA do celular da chanceler alemã Angela Merkel. De acordo com a atual legislação norte-americana, entretanto, a NSA também goza de total liberdade para espionar cidadãos estrangeiros comuns que vivam fora dos Estados Unidos. E não só pode coletar os metadados, como o conteúdo de suas comunicações – inclusive chamadas telefônicas, e-mails e mensagens de texto. As comunicações entre cidadãos norte-americanos e estrangeiros também são vulneráveis mesmo no caso do cidadão norte-americano não ser considerado um “alvo” da vigilância.

Esse profundo desrespeito pela privacidade eletrônica tem implicações particularmente preocupantes no que se refere à liberdade de expressão. Em parte porque a privacidade e a liberdade de expressão estão intimamente vinculadas. É mais provável que as pessoas falem com franqueza se tiverem certeza de que falam em privado. Tanto no caso de um advogado falando com seu representado, quanto no de um paciente falando com seu médico, de uma fonte falando com um jornalista ou de um defensor de uma causa impopular dirigindo-se a outros apoiadores, um discurso sólido sofre quando a privacidade fica em risco.

Mas o alcance exagerado da NSA também põe em risco a liberdade de expressão de outras maneiras. Um caso relativamente comum é a situação em que um governo repressivo, como o da China, pede a uma empresa da internet informações sobre um usuário. A solicitação mais famosa desse tipo de pedido envolveu o jornalista chinês Shi Tao, que acabou de completar seis anos de cadeia por “vazar segredos de Estado” – ao enviar a um grupo de direitos humanos informações sobre as proibições de divulgação pela mídia do décimo-quinto aniversário da revolta da Praça Tiananmen, em 1989, e do massacre que se seguiu. Atendendo à solicitação da China, o Yahoo entregou a informação do e-mail de Shi, contribuindo para sua condenação.

A melhor proteção contra a censura

Uma das melhores defesas contra essas solicitações é as empresas de internet armazenarem as informações de usuários em provedores localizados fora do país em questão. Essa abordagem não é infalível – os governos têm maneiras de exercer pressões sobre as empresas de internet para que cooperem –, mas pode ajudar na recusa dessas solicitações. As empresas de internet norte-americanas atualmente preferem repatriar para provedores nos Estados Unidos a maioria das informações sobre usuários em países estrangeiros.

No entanto, após as revelações sobre a vigilância da NSA, muitos países disseram que poderão exigir que as empresas de internet guardem as informações sobre seus cidadãos em provedores dentro de suas fronteiras. Se isso se tornar uma prática padronizada, será mais fácil para os governos repressivos monitorar as comunicações pela internet. Por mais frágeis que sejam os dispositivos de proteção à privacidade dentro dos Estados Unidos, em muitos outros países não são melhores. Por exemplo, apesar de injuriados com a espionagem da NSA, muitos ativistas pró-privacidade no Brasil opõem-se às propostas de seu governo de exigir o armazenamento de informações no país, pois temem que suas leis de proteção sejam inadequadas.

Além do mais, como mostra o caso de Shi Tao, conceder aos governos nacionais um acesso fácil às informações do usuário pode permitir-lhes não apenas invadir a privacidade, mas conter as críticas e descobrir dissidentes. Às vezes, o anonimato é a melhor proteção contra a censura, mas o acesso oficial às informações do usuário torna difícil o anonimato.

A indiferença de Washington

As atuais propostas de mudar a maneira pela qual a internet é regulada, se forem adotadas, também facilitam os esforços dos governos estrangeiros de coletar informações sobre as atividades eletrônicas de seus próprios cidadãos. A internet é principalmente governada através de acordos cooperativos informais entre inúmeras entidades, públicas e privadas, mas uma organização sediada nos Estados Unidos – a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN) – é responsável, entre outras coisas, por coordenar a designação de identificadores exclusivos que permite que os computadores, pelo mundo todo, encontrem e reconheçam um ao outro. A diretoria do ICANN é composta por pessoas privadas, mas o Departamento de Comércio dos Estados Unidos tem um peso significativo sobre sua administração.

Pode parecer anômalo que o governo norte-americano tenha tamanha influência sobre uma rede global, como a internet, e agora, que os Estados Unidos provaram não ser um guardião confiável de nossa privacidade, têm ocorrido pedidos recorrentes para substituir o atual sistema por uma agência da ONU, como a União Internacional de Telecomunicações. Mas poucas pessoas acreditam que esse novo sistema proteja a liberdade de expressão na internet, pois provavelmente ele iria ceder diante de governos que queiram priorizar a soberania nacional, e não o livre fluxo de informações e ideias. Para os governos, um maior controle nacional tornaria mais fácil a blindagem de internets nacionais, como a China tentou fazer com a sua Grande Firewall e o Irã ameaçou fazer com uma “rede de informação nacional”, possibilitando a censura e minando o poderoso potencial do ciberespaço para conectar pessoas ao redor do mundo.

A espionagem eletrônica da NSA também contribuiu bastante para a perda de credibilidade da reputação do governo norte-americano de paladino da liberdade da internet. Principalmente sob a liderança da ex-secretária de Estado Hillary Clinton, os Estados Unidos criticaram constantemente outros países por prender blogueiros dissidentes ou usuários de redes sociais. Hoje, no entanto, embora os Estados Unidos continuem a respeitar a liberdade de expressão, tanto na internet quanto fora dela, essa virtude foi eclipsada pela indiferença de Washington em relação à privacidade na internet. E mesmo a própria reputação norte-americana de respeitar a liberdade de expressão é minada quando o governo Obama tenta extraditar e condenar Edward Snowden por uma suposta violação de segurança, mas que para muita gente não passou de uma denúncia legítima.

Norte-americanos parecem não se importar

Além dos usuários de internet, quem provavelmente se sente mais ameaçado pela indiferença de Washington em relação à privacidade são as empresas de internet norte-americanas. Empresas como Google e Facebook estão apavoradas, sem dúvida, com a possibilidade de que usuários em outros países comecem a procurar alternativas não-americanas para evitar a espionagem da NSA. A Federação de Jornalistas Alemã, por exemplo, aconselhou recentemente seus membros que evitem usar empresas de internet norte-americanas para enviar e-mails ou fazer buscas devido à vigilância da NSA; a Deutsche Telekom disse que está tentando evitar que mensagens eletrônicas entrem nos Estados Unidos sem necessidade absoluta. Portanto, as empresas de internet podem tornar-se um poderoso grupo para pressionar o governo norte-americano no sentido de reformar suas leis de vigilância.

É claro que há uma ironia nos protestos de empresas que embolsam bilhões explorando as atividades online de seus clientes para fins comerciais. Porém, sem o poder coercitivo do Estado, as empresas privadas têm menos capacidade de fazer mal, e, ao contrário dos governos, enfrentam – pelo menos teoricamente – uma pressão competitiva para respeitar a percepção de seus clientes de seus próprios limites.

Talvez seja um mistério que os próprios norte-americanos pareçam, em grande parte, não se importar com as revelações da NSA. Mas essa condescendência não é compartilhada por grande parte do resto do mundo, onde muitas vezes as lembranças ainda são recentes de casos em que o Estado abusou do acesso às vidas privadas. Esse medo no exterior – transmitido pelas empresas de internet, que acabaram dependendo de uma base global de clientes – talvez seja o melhor que podemos esperar para superar a relativa indiferença do público norte-americano.

Reformar as políticas de vigilância

Com o lema da NSA sendo, aparentemente, “se é possível acessar, vá fundo”, fica-se com a impressão de que o governo norte-americano nunca fez uma avaliação básica do custo-benefício da vigilância da agência. No lado do custo, não se deve simplesmente pesar a invasão de nossa privacidade, mas também o prejuízo que acarreta ao fluxo de informação sem obstáculos na internet. Os norte-americanos podem subestimar a privacidade, mas tendem a compreender, sim, a importância da liberdade de expressão. No lado do benefício, a NSA ainda não conseguiu mostrar que a espionagem maciça de nossas comunicações eletrônicas tenha aumentado significativamente a vigilância eletrônica tida como alvo – centrada em indivíduos específicos que podem ser mostrados como representando uma ameaça –, que deveria fazer parte de qualquer esforço contra-terrorista. O governo norte-americano vem enfrentando sérias dificuldades para apresentar qualquer conspiração terrorista que não tenha sido impedida senão pela coleta maciça de nossas comunicações.

Em setembro, fiz uma pergunta a Kathryn Ruemmler, conselheira da Casa Branca, sobre esta falta de um benefício demonstrável. Ela se defendeu com o argumento de que se deve considerar a informação obtida pela vigilância como parte de um “mosaico” de informações coletadas de outras maneiras. Mas essa foi a mesma causa fundamental – a mesma palavra – usada pelo governo Bush para justificar a prisão de pessoas para interrogatório que, aparentemente, não têm qualquer informação relevante a oferecer.

Obama pôs fim a algumas das piores práticas contra-terroristas de Bush. Agora, precisa ir além das garantias baratas que nos ofereceu após as primeiras revelações de Snowden, e frear a NSA. Se os Estados Unidos quiserem preservar a internet como uma rede vital e livre para a conexão de pessoas ao redor do mundo, precisarão reformar suas políticas de vigilância e respeitar a privacidade – não apenas a dos norte-americanos, mas a de todos os outros.

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Kenneth Roth é advogado e diretor-executivo do Human Rights Watch