Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A morte de um estadista

A morte de Nelson Mandela, último estadista do século 20, suscita uma questão importante: o que é mesmo um estadista? Sabemos todos que essa palavra constitui um elogio, e que a esmagadora maioria dos governantes não merece ser assim chamada. Mas o que significa? Reservo o nome de estadista, no século que passou, a quatro governantes que se destacaram. Três deles estiveram entre os vencedores da II Guerra Mundial: Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Charles de Gaulle. (Mas não basta ter derrotado o nazismo para ser chamado de estadista. Os generalíssimos Stalin e Chiang Kai shek seguramente não mereceram, da humanidade, esse elogio). O quarto, a meu ver, foi Nelson Mandela. Mas por quê?

O critério que adoto é simples, mas exigente. Estadistas são governantes cuja ação muda o mundo para melhor. O primeiro ponto parece óbvio – que estadista tem de ser, antes de mais nada, governante – mas não o é. Já ouvi várias pessoas apontarem, como estadista, Gandhi. Considero-o o maior líder ético do século 20, mas ele nunca exerceu nem almejou um cargo de poder. Estadista é um homem de Estado, ou seja, alguém que governa.

Mas a novidade do estadista, na segunda metade do século 20, é que seu campo de ação sai do Estado para se voltar para a sociedade. E sai da nação para se voltar para a humanidade. Joaquim Nabuco podia escrever a biografia de seu pai, Nabuco de Araújo, e dar-lhe o belo título de “um estadista do Império”. Na época, construir o Brasil e o Estado brasileiro eram ações importantes. Seguramente, os dois Nabucos merecem nosso reconhecimento histórico. Mas, hoje, o estadista tem que ir além da construção do Estado. Talvez um dia, aliás, devamos mudar a própria palavra, e inventar outra, que enfatize a sociedade, e não mais o Estado.

Meses intermináveis

Mas o fato é que, desde o fim da II Guerra Mundial, gradualmente uma exigência ética impacta as políticas dos Estados. Veja-se o contraste, nos Estados Unidos, entre a política amoral do secretário Kissinger, no começo dos anos 1970, e a adoção desde 1977, pelo presidente Jimmy Carter, de uma agenda de direitos humanos. Carter perdeu a reeleição, mas mudou o perfil de seu país. Não é à toa que, hoje, Kissinger mal pode viajar para fora dos Estados Unidos, correndo o risco, como Pinochet, de ser preso em qualquer outro lugar. Um dos homens mais influentes do mundo virou um fora da lei, pela simples razão de que sua realpolitik visava a promover, por quaisquer meios, os interesses de poder de seu país.

Os próprios Estados nacionais são cada vez mais cobrados em nome de uma moralidade internacional – que converge com os direitos humanos reconhecidos pelas Nações Unidas – e de compromissos com as sociedades. Um governante que reprima seu próprio povo, o que antes era tolerado, está-se tornando algo tão odioso que muitos até pedem, como é hoje o complexo caso da Síria, que se intervenha para afastá-lo e puni-lo.

Os estadistas que enumerei repartem algumas características. O único dos quatro a ter uma sequência clara em suas ações foi Roosevelt, que começou acabando com a tragédia social causada pela crise de 1929 e depois enfrentou o fascismo na II Guerra Mundial. Churchill teve uma vida duvidosa, enfant terrible que foi, vaidoso, ministro desastrado, colonialista. Redimiu-se graças à luta implacável que, desde meados da década de 1930, moveu contra Hitler. Era quase o único no Parlamento britânico a alertar para os riscos que o nazismo trazia. Derrotada a França, enfrentou o inimigo com enorme coragem. Não podemos esquecer que, nos meses decisivos e intermináveis de junho de 1940 a junho de 1941, seu país foi praticamente o único a enfrentar o poder enorme dos exércitos alemães e japoneses.

Política sem ódio

De Gaulle, na mesma hora em que Churchill assume o poder no Reino Unido, tem apenas algumas centenas de homens dispostos a lutar, com ele, pela França. A maior parte do seu povo aceita a rendição, a humilhação. Ele luta. Monta um exército, recria o Estado. Consegue que seu país apareça como um dos cinco vencedores do nazismo. Salva a França. Volta ao poder, em 1958, pela direita colonialista, mas supera essa limitação ao reconhecer as independências africanas, inclusive, com risco de vida seu, a da Argélia. E contesta a aventura dos Estados Unidos no Vietnã.

Mandela também passou por enorme mutação. Defendeu a luta armada contra o poder racista e por isso foi encarcerado. Travou uma luta nobre e digna contra um regime criminoso, próximo em vários pontos do nazismo. Mas sua grandeza foi, ao sair da cadeia, renunciar à vingança – e, mesmo, a uma justiça que não fosse temperada pela bondade. Se quisesse mandar os brancos embora, teria o direito moral de fazê-lo. Mas seu país viraria algo a meio termo entre o Zimbabwe e a Argélia. Teve a grandeza de não se vingar. Soube estender a mão. Em vez de tribunais de Nuremberg, como os que julgaram os nazistas, criou a Comissão de Verdade e Reconciliação. Os criminosos mais detestáveis, se confessassem e pedissem perdão, eram anistiados. Inúmeros gestos humanos, como o de chamar à sua posse seus antigos carcereiros ou o de promover o esporte dos brancos racistas, tema do filme Invictus, engendraram a paz. Restam ainda pobreza e injustiça social em seu país, mas tenho certeza de que uma política de enfrentamento e castigo teria causado danos bem maiores. Mandela foi, como estadista, o homem político mais próximo da generosidade de Gandhi. Deixa um exemplo de política feita sem ódio, de política feita para acabar com o ódio. Esse é um enorme elogio.

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Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo