Desde novembro, os veículos de comunicação estão veiculando notícias sobre uma possível epidemia de dengue prevista para o verão. O próprio Ministério da Saúde, ao lançar a sua campanha – “Não dê tempo para a dengue” – no dia 19/11, reiterou que o Brasil tem 157 municípios em situação de risco de dengue e outros 525 em alerta, a maioria na Região Nordeste.
Os dados integram o Levantamento Rápido de Índice para Aedes aegypti (LIRAa), que mediu o nível de infestação pelo mosquito em 1.300 cidades brasileirais. Em 2013, o país notificou mais de 1,4 milhão de casos suspeitos, um aumento de 54,6% em relação a 2010.
A campanha do Ministério da Saúde será veiculada em TVs, rádios, internet, redes sociais e mídias impressas e no exterior, e tem como objetivo a prevenção. Paralelo ao esforço do governo, essa época mostra também um aumento considerável de matérias sobre dengue em toda a mídia. Mas, será que a cobertura de fato ajuda ou prejudica a prevenção da doença?
Em um trabalho apresentado durante o VI Congresso de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco, realizado de 13 a 17 de novembro – “Entre vítimas e cidadãos: sofrimento e política nas narrativas do Jornal Nacional sobre as epidemias de dengue – 1986-2008)” – a pesquisadora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Icict, Janine Cardoso, debateu as relações entre saúde, política e mídia, a partir da análise da presença da lógica do risco na cobertura das epidemias de dengue realizada nas últimas três décadas pelo Jornal Nacional (JN), o principal telejornal do país.
“A pobreza esvaziada de ‘poder explicativo’”
Em entrevista ao site do Icict, Janine Cardoso fala sobre a importância de se discutir as relações entre saúde e mídia, e as reflexões que seu trabalho buscou levantar.
Qual a importância de se discutir/estudar as relações entre saúde e mídia?
Janine Cardoso – Saúde e mídia são dois vetores importantes na modelagem das experiências contemporâneas. São muitas as interrelações a serem investigadas e creio que as mais potentes são as que interrogam como essas instâncias constituem nossa percepção dos fatos e fenômenos.
Em relação à mídia, creio que não restam muitas dúvidas quanto a sua ativa participação na configuração do que se deseja (e se teme) individual e coletivamente, assim como na seleção das formas para alcançar esses objetivos. Atuação que é especialmente sensível e multifacetada no campo da saúde coletiva, dada a centralidade e urgência das demandas com as quais seus diferentes profissionais e instituições lidam cotidianamente.
Exemplos rápidos, recentes e eloquentes: a insistência em uma epidemia de febre em amarela em 2007/2008, levando à vacinação desnecessária; sua participação no circuito de produção de novas doenças, indispensável para ampliação do mercado para medicamentos (novos e também aqueles já conhecidos, mas agora com outras possibilidades terapêuticas).
Mas é preciso destacar que essas relações nunca são imediatas, nem automáticas como se fossemos guiados pela mídia (e é sempre bom pensar no plural, mesmo no caso brasileiro, em que as empresas de comunicação são tão concentradas). O que os discursos midiáticos constroem e nos propõem têm força porque alimentam e são alimentados por processos sociais mais amplos, como a descrença na política e os ideais contemporâneos de saúde, segurança e longevidade.
No trabalho apresentado no VI Congresso de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco, a senhora mostrou a cobertura jornalística, feita no Jornal Nacional, das epidemias de dengue ao longo de três décadas. Quais fatos lhe chamaram mais a atenção durante a pesquisa?
J.C. – Encontrei deslocamentos nas formas de explicar as epidemias e nas propostas para seu enfrentamento, relacionados às mudanças nas nossas concepções de justiça social. Os mais significativos apontam para diluição dos determinantes sociais das epidemias e do seu enquadramento como problema coletivo. A transição para o século XXI articulou simultaneamente o agravamento da epidemia, o fortalecimento do sentimento de vulnerabilidade, o interesse nas narrativas biográficas dos casos, mortes e sofrimento provocados pela dengue, assim como a responsabilização do indivíduo – gestor, político e cidadão –, orientada pela lógica do risco. Enfatizo que o telejornal, além da atividade informativa, passou a reivindicar o posto de representante da população e de juiz da atuação de outras instâncias sociais, principalmente na epidemia de 2008.
Esse posicionamento contrasta bastante com a cobertura das primeiras epidemias, cujas causas incluíam e destacavam a dívida social acumulada pelos governos militares, que também desarticulou os sistemas de vigilância do vetor e do número de casos etc. A dengue e outras doenças apareceriam como ‘sintoma’ das desigualdades sociais, no contexto mais amplo de redemocratização do país. O debate foi mais intenso na imprensa escrita, mas também chegava ao JN e aos telejornais locais. No final dos anos 1980 e durante a década seguinte, esse enquadramento perde espaço e intensifica-se o viés da explicação técnica e o da denúncia da omissão e negligência que colocava em risco a vida de cada um, não mais relacionado a um projeto político mais amplo.
É importante não perder de vista que epidemias graves coincidiram com períodos eleitorais (como 2002 e 2008) e acirraram essas características, mas penso que outras mudanças culturais mais amplas também estavam (estão) em curso, como dito antes.
A senhora falou também em sua apresentação sobre a diferença entre os direitos do cidadão e dos direitos da vítima. O que a senhora quis dizer explicitamente?
J.C. – Tem a ver com o que comentava antes: o fortalecimento, aparentemente paradoxal, do sentimento de vulnerabilidade, do temor do sofrimento, simultâneo à hipertrofia da responsabilização do indivíduo. Fiquei muito impressionada ao perceber o quanto a pobreza era mostrada e ao mesmo tempo esvaziada de ‘poder explicativo’ ou mesmo do potencial de gerar indignação. Um dos exemplos mais fortes foi uma matéria do JN, com mais de 10 minutos, exibida em 25 de março 2008, incluindo pequenas reportagens, de um minuto, dedicadas a quatro vítimas (uma adolescente, duas crianças e um bebê). Embora todas as vítimas fossem pobres e morassem em favelas ou na periferia do Rio de Janeiro, o que áudio e vídeo destacavam era o quanto eram felizes, bons filhos e boas filhas, esforçados. A denúncia não era que viviam em condições precárias, sem acesso aos serviços médicos de qualidade, mas das vidas interrompidas pela irresponsabilidade de um outro (o vizinho, o médico…). Essa narrativa convida os telespectadores a se sentirem como iguais às vítimas, mesmo que gozem de outro padrão sócio-econômico e objetivamente tenham muito mais recursos de proteção, porque favorece a sua identificação como vítima potencial de morrer ou sofrer a perda de um ente querido.
Veja, é claro que existem (e como existem!) corruptos, negligentes e que devem ser punidos. Isso está fora de questão, assim como a existência de medidas capazes de reduzir a letalidade. A questão que coloco é se corrupção e irresponsabilidade podem, por si só, explicar a permanência e agravamento dos eventos epidêmicos. Ou, por outro lado, se combatê-los deve ser a principal forma de seu enfrentamento. Pensar exclusivamente desse ponto de vista, como se propôs em 2008, e não só o JN, deixa de lado vários aspectos e frentes de atuação envolvidos, e parece fazer crer que resolver a dengue, hoje, é uma questão simples e não complexa como apontam especialistas.
******
Graça Portela é jornalista