Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Torturar para divertir

Na quinta-feira passada [12/12], mais de 7 milhões de americanos assistiram ao episódio final da terceira temporada de Scandal, também exibida no Brasil. Na mesma quinta-feira, quantos milhões de americanos terão ignorado outro fato que está ligado à trama de Scandal, o novelão soft porn estrelado pela estimada atriz Kerry Washington?

Explico: O relatório do Senado sobre o programa de tortura de presos no governo Bush – 6 mil páginas e US$ 40 milhões gastos na pesquisa – poderá afinal ser parcialmente revelado ao público. O relatório foi adotado há um ano pelo Comitê de Inteligência do Senado e mantido em sigilo graças a uma decisão de Barack “serei o presidente mais transparente da história” Obama. Sob pressão da CIA, o presidente que pôs fim à tortura achou que o público não devia saber quanto custou ao país este capítulo vergonhoso de sua história, inaugurado pelo 11 de setembro. O vice-presidente Joe Biden e um elenco de militares e políticos de todo o espectro ideológico haviam se declarado favoráveis à divulgação do relatório. Agora, a Casa Branda chegou a um acordo com a líder do Comitê, senadora Diane Feinstein, que, há um ano, declarou o relatório um instrumento fundamental para que os Estados Unidos corrigissem os “erros terríveis” feitos pela CIA.

Em 2008, um general da academia militar de West Point, no Estado de Nova York, atravessou o país e foi bater um papo em Hollywood. A popular e hoje finada série 24, com Kiefer Sutherland, estava em sua sétima temporada e o general foi dizer aos criadores de 24 que a trama exercia um efeito nefasto sobre os soldados americanos no Iraque e no Afeganistão. As frequentes cenas de tortura praticada por Jack Bauer, vivido por Sutherland, estavam impressionando os soldados com seu triunfalismo e falsificação da eficácia dos maus tratos. Não é preciso muita imaginação para concluir que o general foi pedir a redatores de uma série de ficção para pegar leve porque as cenas estavam se tornando realidade.

A série Scandal começou como uma trama de sexo e poder em que a absoluta falta de credibilidade é aceita em nome do entretenimento. Sua vulgaridade faz com que seja descrita como “um prazer culpado”, o equivalente a comer junk food.

Na segunda temporada, o personagem Huck, vivido por Guillermo Diaz, foi barbaramente torturado num porão de Washington mas a criadora da série Shonda Rhimes apresentou um contraponto, um promotor público que questiona a moralidade da tortura mas logo é neutralizado por um troglodita do poder executivo.

Vácuo moral

Nesta temporada, o mesmo Huck, que se tornou “viciado em torturar” (!) depois da lavagem cerebral que sofreu num programa secreto do governo, decidiu torturar uma colega sua, parte da equipe da protagonista Olivia Pope. A colega havia traído o grupo e Huck, uma máquina de matar, se viu compelido a administrar a punição.

Seu prazer em usar alicates para arrancar os dentes da colega é evidente. “Adoro chocar o público”, contou Diaz ao website The Wrap. “É excitante para um ator. Fazemos isso para as pessoas sentirem algo.”

Num país onde o horário nobre da TV aberta não pode mostrar um nu frontal, a tortura é mostrada como pura excitação, igualada ao sexo do presidente com a assessora Olivia Pope no Salão Oval.

A tortura não existia nos dramas da TV americana antes de 2001, a não ser como exceção praticada por vilões. Mas na década passada, os personagens dos dramas de TV começaram a ser torturados em nome do bem. O brutal Jack Bauer arrancava informações em minutos mas, pelo menos, o contexto era sombrio. Em Scandal, a tortura é só mais um recurso narrativo para divertir.

Quando o filme A Hora Mais Escura apresenta como fato a falsidade de que Osama Bin Laden foi capturado graças a informações obtidas sob tortura, não podemos nos surpreender com os resultados de pesquisas de opinião. Em 2007, 27% dos americanos concordavam com o uso da tortura para obter informações de presos suspeitos de terrorismo. No ano passado, a aprovação da tortura subiu 14 pontos, para 41%. Mesmo quando consultado especificamente sobre técnicas bárbaras como afogamento, uso de cães para aterrorizar presos, o público tem se mostrado mais favorável à tortura durante o governo Obama.

O relatório que vai sair sabe-se lá com quantos trechos censurados mostra, de acordo com quem leu, o quanto o uso secreto e indiscriminado da tortura prejudicou os Estados Unidos e não falo aqui apenas do aspecto ético. Se tivesse saído há um ano, poderia ter influenciado a imaginação dos criadores de ficção para TV? Não sei. Mas uma coisa é certa: a tortura em séries como Scandal aparece num vácuo moral e histórico. Ao contrário do que espera o ator Guillermo Diaz, as pessoas não estão sentindo nada. E aí está o problema.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York