A internet fez tantos progressos no Brasil que foi capaz de funcionar como instrumento de convocação e acompanhamento da revolta de junho e julho de 2013, mas ainda não foi capaz de obrigar o Estado brasileiro a se tornar menos opaco, ou, dito de outra maneira, não armou o cidadão com meios para saber mais sobre o funcionamento dos poderes nas esferas federal, estadual e municipal.
Uma pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa do Observatório de Gestão da Informação, coordenado pela professora da UFRJ/Ibict Ana Malin, com base em um ano de noticiário sobre a Lei de Acesso à Informação (LAI), entre sua entrada em vigor, em maio de 2012, e abril de 2013, constatou que o Estado foi fonte/parte interessada de 70% das matérias e a sociedade civil (organizações sociais, cidadãos, ONGs, empresas, associações sindicais e profissionais), de 30%.
Além dessas duas fontes interessadas (stakeholders), a pesquisa classificou as finalidades das notícias em quatro temas: promoção da governança pública, administração da LAI, anticorrupção e direitos humanos.
O universo da pesquisa consistiu em 1.918 matérias jornalísticas diariamente notificadas pelo Alerta Google contendo a expressão “lei de acesso à informação”. Foram veiculadas por sites jornalísticos, de órgãos públicos e de organizações da sociedade civil, com notícias originadas em todas as unidades da federação e grande número de municípios.
Todas as matérias foram inseridas num banco de dados do Observatório de Gestão da Informação e lidas pelo grupo de pesquisa. Uma amostra de 604 notícias foi objeto de análise de conteúdo para identificar fontes – quem fala – e interpretar interesses, explícitos ou subjacentes– com que finalidade.
A conclusão de Ana Malin é que no primeiro ano o próprio Estado foi o principal promotor da LAI no país, num processo de cima para baixo, dentro de secular tradição brasileira. Ela interpreta que esse esforço tenha sido feito para controle do próprio Estado. No final do período analisado, entretanto, nota-se uma participação maior da sociedade civil no noticiário, enquanto a participação das fontes oficiais segue caindo.
“Administração opaca”
A pesquisa recorreu a notícias jornalísticas por causa da falta de transparência do Estado brasileiro. “A CGU (Controladoria Geral da União, encarregada de fiscalizar a aplicação da LAI), não permite acesso público aos pedidos, nem às respostas, o que torna a administração da lei opaca”, disse a pesquisadora em entrevista ao Observatório da Imprensa.
“As estatísticas publicadas pelo governo pouco revelam. São computados positivamente os pedidos que receberam algum tipo de resposta, mesmo desconhecendo a informação. O retorno que a CGU dá para a sociedade é ruim. Então, fomos procurar uma maneira de ver como a sociedade tinha recebido a lei e como a estava usando. E nos pareceu que a opacidade não existe à toa: trata-se, por ora, de um instrumento do Executivo federal, que tem a chave da caixa-preta do que está sendo pedido.”
Ana Malin deu exemplo de um tipo de pedido que é frequente e cuja importância social é limitada: “qual é o salário do meu ex-marido, ou da minha ex-mulher”. Em outra vertente, existem demandas que têm a ver com mais democracia e mais controle social, não apenas mais controle interno. Ela exortou a sociedade civil a “encontrar caminhos para pressionar por mais transparência”.
A professora citou como exemplo de resposta negativa computada como pedido atendido uma consulta feita pelo próprio grupo de pesquisa a diferentes governos estaduais para saber quais são os custos anuais, respectivamente, de um aluno do ensino básico e de um presidiário. O governo da Bahia respondeu que “somente uma força-tarefa” poderia dar a resposta.
Números ilusórios
Uma reportagem que foi manchete da primeira página do Globo (“Lei de Acesso teve só um recurso atendido. De 260 recursos examinados por comissão de ministros, 259 foram recusados”, 16/12, ver aqui) sugere possível má vontade da administração federal e, ao mesmo tempo, trabalha com números superlativos, como se vê no quadro abaixo.
Até 11/12, foram registrados 139 mil pedidos. Grandes agregados numéricos, como se sabe, às vezes mais escondem do que revelam. Os mostrados acima podem dar ideia de grande movimentação cidadã, geralmente atendida (“acesso concedido sem necessidade de recurso”), mas trata-se de uma contagem via sistema de informática (e-sic), que encaminha automaticamente um e-mail de retorno e o contabiliza como resposta atendida. Se o cidadão ou entidade não pode ter acesso à informação, ela é classificada como sigilosa. Os recursos mencionados na matéria do Globo são, portanto, pedidos de reclassificação.
Governança pública
O pressuposto inicial da pesquisa era de que o empuxo para o regime de acesso à informação viria da sociedade civil, gerando demanda superior à capacidade política e administrativa de resposta dos órgãos públicos, o que não se verificou no período analisado.
“A esmagadora maioria de notícias (93%) esteve voltada para os interesses de governança pública e da administração da LAI, mostrando-se compatível com a concentração das fontes no Estado”, disse a professora.
Nos três primeiros trimestres, o carro-chefe do noticiário foi o âmbito federal. No quarto trimestre, as esferas estadual e municipal passaram à frente:
“O interesse no primeiro ano da LAI mostrou estar mais voltado para a vigilância intra-estatal, estabelecida de cima para baixo, do que para o controle social da ação do Estado. Mas apontando movimentos generalizados de mudanças nos padrões de gestão pública da informação”, lê-se em artigo de Ana Malin sobre a pesquisa.
O banco de dados com as notícias arquivadas inclui título, veículo, data, lead (2 a 4 linhas) e o link para a íntegra da notícia, como nos exemplos abaixo:
Fonte: Estado |
Prefeitura de Resende regulamenta lei de acesso à informação Diário do Vale
Dilma: combate à corrupção no Brasil é prática de Estado… exame.com |
Fonte: sociedade civil |
Mais do que apenas os salários Observatório da Imprensa
Ações contra incêndios em favelas de São Paulo ficam no papel Correio do Brasil |
Mudança de tônica
“Certos movimentos observados nos meses finais da pesquisa, como aumento na participação das esferas públicas estaduais e municipais, e de atores da sociedade civil interessados no controle social de políticas e recursos públicos”, prossegue o artigo, “parecem indicar mudança nas tônicas aqui observadas sobre o novo regime de acesso a informações, a ser confirmada em pesquisas futuras.”
“A expectativa é que, ao entrar em fase de consolidação, o regime da LAI seja alimentado por maior competência dos atores sociais em seu uso, e que, chegando às administrações municipais, aproxime-se mais dos interesses dos cidadãos, invertendo a tendência dominante neste primeiro ano de vigência, da vigilância intraestatal para a de controle social, como nova forma de cristalização da res-pública brasileira, democraticamente mais justa e transparente.”
Essa percepção coincide com a do advogado Renato Opice Blum, em artigo no Valor (“Democratização e popularização da internet“, 4/12/2013): “Aos poucos, com acesso à educação e aos meios de fiscalização do poder público, o poder que ‘emanava do povo’, mas escorregava de suas mãos, pode ser retomado, ainda que sutilmente, de forma equilibrada e absolutamente interessante para o país”.