Uma menina de 11 anos tomava café da manhã na sala de sua casa, numa favela do subúrbio do Rio, quando foi atingida por uma bala na cabeça e morreu. Seu irmão, de 7 anos, e um tio, ficaram feridos. Na manhã seguinte, uma menina de 10 anos levou um tiro no peito em frente à casa de parentes, em outra favela carioca. À tarde, um menino de 2 anos teve a cabeça varada por uma bala quando voltava com os pais para casa, num morro no Centro de Niterói, e está hospitalizado em estado grave. Entre a noite e a madrugada, uma mulher foi ferida na perna por um tiro de fuzil na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio, e um adolescente de 15 anos baleado numa rua da Cidade de Deus, na Zona Oeste. No sábado (28/12), uma menina foi gravemente ferida na cabeça, em Belfort Roxo, na Baixada Fluminense.
O Globo registrou pelo menos oito vítimas de balas perdidas – à falta de melhor denominação para o que, na maioria absoluta das vezes, deveria ser classificado como “fogo cruzado” – na semana do Natal. Fora os dois feridos em tiroteio entre policiais e traficantes, na Rocinha “pacificada”, que não entraram nessa contabilidade. Fora, como sempre, os casos não notificados, ou que não chegam a ser noticiados.
Porém, o que causou revolta mesmo foi a pichação da estátua de Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana.
A carne e o bronze
Seria simples dizer que casos de tiroteios, especialmente na periferia, mesmo quando fazem vítimas de carne e osso, se banalizaram a ponto de já não provocarem indignação a não ser dos parentes e amigos próximos. Mas as agressões à estátua do poeta também já se tornaram rotina: o próprio jornal informa que este foi o décimo ataque à escultura, da qual, em geral, eram retirados os óculos de bronze. Entretanto, continuam a merecer destaque. Talvez porque sintetizem a ofensa a um símbolo da nossa cultura, arranhem a imagem de serenidade e cordialidade que pretendemos cultivar e, nunca será demais lembrar, rendam belas imagens à beira-mar.
Desta vez, além do mais, havia o flagrante de uma câmera de vigilância, que capturou o casal responsável pela pichação, no início da madrugada do dia 25/12: a cena foi incorporada no noticiário on line e logo se espalhou pela internet, provocando a previsível enxurrada de manifestações de revolta.
No Globo, ao lado da chamada no alto da capa de 26/12 sobre o “Natal violento”, para o qual o jornal dedicou internamente uma página inteira, o destaque era a foto do rosto em bronze do poeta, pelo qual escorria a tinta branca.
Um antigo morador do bairro, dono de uma loja de materiais de construção, logo providenciou, por conta própria, a limpeza da estátua. Mereceu foto aberta na primeira página do dia seguinte, tirou fotos com clientes e desconhecidos, virou celebridade.
(Na mesma edição, no alto da página, uma sequência de fotos contrariava a imagem do carioca cordial: eram flagrantes da perseguição e prisão de um jovem musculoso que havia roubado pouco antes as mochilas de turistas argentinas, também na praia de Copacabana).
Uma fotografia na parede
O ato de incivilidade contra a estátua – tipificado como crime pelo Código Penal – foi tema da coluna de um articulista do jornal, que relacionava hipóteses para a punição do casal. Reconhecia que, “a olho nu”, comparativamente a tantos episódios que abalaram famílias pobres nessa época do ano, aquele podia ser um crime menor, “mas bateu doído no orgulho carioca”.
O Drummond de bronze está limpo, pronto para ser cercado novamente pelo carinho de moradores e turistas.
Entre os sobreviventes das “balas perdidas” na semana do Natal, duas crianças continuam em estado grave.
E a menina de 11 anos que tomava café da manhã em sua casa na favela tão distante de Copacabana é agora apenas uma fotografia na parede.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)