Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Quando os negros querem entrar em ‘lugares de brancos’

No livro Vida para consumo, o sociólogo Zygmunt Bauman compara o consumismo dos dias hodiernos a uma festa onde todos são convidados, mas poucos podem efetivamente entrar. Nesse sentido, em países capitalistas periféricos como o Brasil, praticamente toda a população está exposta aos mecanismos persuasivos da publicidade, mas somente uma minoria privilegiada tem acesso a determinados bens materiais.

Um caso emblemático da realidade acima exposta é a liminar judicial que proíbe os chamados “rolezinhos”, eventos convocados pelas redes sociais em que jovens pobres da cidade de São Paulo (negros em sua maioria) combinam passeios em shopping-centers.

No sábado (11/1), as portas que dão acesso a alguns shoppings-centers paulistanos foram desligadas e passaram a ser blindadas por policiais. No shopping JK Iguatemi, que apresentava em sua entrada um cartaz alertando sobre a retaliação judicial a quem fosse flagrado em um “rolezinho”, foi realizada uma “triagem” para definir quem poderia entrar no estabelecimento. Indivíduos que apresentavam perfis “da periferia” (ou seja, negros e pardos) e menores de idade desacompanhados dos pais foram barrados.

Em nota divulgada à imprensa, o JK Iguatemi asseverou que “tem como procedimento padrão atuar para garantir a segurança e a tranquilidade de seus clientes, lojistas e colaboradores visando conforto nas compras, lazer, cultura e entretenimento”. “Os lojistas continuarão em busca de medidas para evitar os ‘rolezinhos’. A gente quer respeitar sempre os direitos humanos, mas nós temos que proteger a propriedade, nós temos uma responsabilidade muito grande em relação à segurança desses importantes empreendimentos, e a gente tem que buscar alternativas”, justificou o presidente da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop), Nabil Sahyoun, em entrevista à GloboNews.

Os espaços “mais democráticos”

Já no shopping Metrô Itaquera, a polícia militar utilizou cassetetes, balas de borracha e gás lacrimogênio contra jovens que realizaram um “rolezinho”, sem que tivesse havido qualquer registro de violência. “Tive medo. Já fui em outros rolês, mas desta vez a PM estava batendo até em menina”, disse um adolescente ao jornal Brasil 247.

Não obstante, alguns noticiários da grande mídia exibiram exaustivamente imagens dos tumultos envolvendo adolescentes e policias, com a clara intenção de manipular a população contra os jovens que faziam o “rolezinho”. Segundo o Jornal da Band, “o ‘rolezinho’ é uma invasão de jovens marcada pela internet, em que os participantes dizem que o objetivo é apenas diversão, mas os encontros apavoram os lojistas e clientes, e frequentemente há registros de furtos e vandalismos”.

Por sua vez, Reinado Azevedo, colunista da Veja, afirmou que considerar o “rolezinho” uma espécie de revolta dos pobres contra os endinheirados é uma grossa bobagem. Para ele, os shoppings têm se caracterizado como os mais democráticos espaços do Brasil. Boa parte dos shoppings de São Paulo, serve também aos pobres, que ali encontram um espaço seguro de lazer”. Já de acordo com especialistas ouvidos pela Rede Globo, a atitude tomada pelos shoppings paulistanos é legal. “O shopping franqueia o ingresso do público para o exercício das atividades que ele disponibiliza: entretenimento e consumo. Ele não é obrigado então a tolerar e permitir reunião, seja de que natureza for”, asseverou Mauricio Pessoa, professor de Direito da PUC.

Calor dos fatos

Todavia, é importante ressaltar que a mesma justiça que concedeu a liminar que proíbe jovens pobres de frequentar determinados lugares, também define como crime “recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”. Em outros termos: dois pesos, duas medidas.

Por outro lado, nas redes sociais, espaço onde não há limites para a liberdade de expressão e o pensamento conservador pode direcionar toda a sua ira contra determinadas minorias, os adeptos do “rolezinho” foram tachados de baderneiros, bandidos, vândalos e favelados, entre outros adjetivos que geralmente são atribuídos aos pobres no Brasil.

Em última instância, não se pretende aqui discutir sobre a legitimidade ou não do “rolezinho”. É demasiadamente complexo examinar determinado acontecimento no calor dos fatos. Evidentemente que algumas pessoas se aproveitam do movimento para fins escusos, mas a maioria só deseja que o seu direito de ir e vir seja respeitado.

Democracia racial?

Sendo assim, é importante denunciar o apartheid velado que vigora no Brasil. Nossa sociedade continua norteada por uma lógica preconceituosa herdada do período escravocrata. Como bem questionou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Martim de Almeida Sampaio,se fosse o playboy da Zona Sul, bem de vida, que fosse com seus amigos ao shopping center fazer um ‘rolezinho’? Eles seriam discriminados?”

Sempre que pobres e negros começam a frequentar determinados lugares que antes eram exclusivamente das elites, a verdadeira face do racismo brasileiro, escamoteado pela hipocrisia cotidiana, se revela e, não raro, sob a conduta violenta dos aparelhos repressores do Estado. Lembrando as palavras de Juninho Jr, um dos organizadores de uma manifestação contra a repressão dos shopping centers ao “rolezinho”, “a burguesia propaga cotidianamente que para você ser alguém, ser reconhecido, é necessário ter e consumir. Porém, enquanto os jovens [pobres] sonharem com carros de luxo, roupas de marca, lá na periferia, tudo bem, o problema é quando eles desejam ocupar os espaços que tradicionalmente só são ocupado pelo andar de cima, aí gera uma contradição que a elite não consegue responder senão pela repressão.”

A mensagem das classes dominantes é clara: negros e pobres só são socialmente aceitos quando ocupam posições subalternas ou os espaços periféricos a eles destinados; sua presença nos templos do consumismo moderno, os shoppings centers, não deve ser, em hipótese alguma, tolerada. Diante dessa realidade segregacionista, ainda há quem insista em afirmar que somos uma democracia racial. Lastimável equívoco.

Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG