Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A inclusão social pelo consumo

A sociedade brasileira projetou a realização social no conforto, no luxo, em bens de consumo prestigiosos. Há melhor símbolo disso do que a profusão de iPhones? Eles não se limitam a dar prazer. Eles nos realizam. Melhor dizendo: é o prazer que nos realiza. Mas esta visão do mundo, tão frequente no Brasil, não é nada óbvia. Um francês imbuído do valor da educação, um alemão formado na convicção do dever, um inglês convencido do valor ético do trabalho dificilmente enxergariam as coisas assim. Mas, aqui, é muito forte a ideia de que pelo prazer se vence. Basta ligar a rede Globo, qualquer dia deste mês, em torno das 23 horas, para ver isso, parte ao vivo, tudo em cores.

Volto a comentar os rolezinhos. Eles foram uma surpresa pelo timing e pela dimensão, mas prolongam algumas tendências de nossa sociedade que não deveriam nos surpreender. As manifestações de 2013 foram uma exceção, como as Diretas-Já em 1984 e o impeachment de Collor, em 1992, espaçados momentos em que a cidadania toma o espaço público para defender a coisa pública. O rolezinho é político, mas porque tem um significado político, não porque se expresse em termos políticos. Ele responde a uma nossa tendência, para o mal – e para o bem –, que é carnavalizar.

Na sua melhor versão, é Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, de 1929: “A alegria é a prova dos nove”. Naquela época, dizia-se que o Brasil era fruto de “três raças tristes”, o português, o negro e o indígena. Oswald rompia com esse mito de uma tristeza originária. Contestava a herança jesuítica e religiosa da colônia. Abria lugar para o carnaval, a festa, as paixões alegres.

Rolês mostram que a ideologia do shopping venceu

Mas o fato é que carnavalizamos. Não é só o Big Brother que propõe o sucesso pela exibição do corpo. É quase toda a mídia popular que, sempre que vai contrastar esforço e lazer, estudo e diversão, mente e corpo, opta decididamente pelo segundo termo. Nossa cultura é sobrecarregada de hedonismo.

Já observei aqui que prazer não é felicidade, ao contrário do que se ouve todos os dias. O prazer é breve, instantâneo, intenso; a felicidade é um estado simples e permanente, modesto. Só é feliz quem reduz sua demanda de prazeres. Mas nossa sociedade construiu um sistema em que o prazer é requerido o tempo todo, com sua consequência, apontada pelos filósofos desde a Antiguidade: os prazeres não levam à satisfação. Eles formam uma adição. Uma sociedade que valoriza a este ponto o consumo, seja na Miami de classe média, seja no rolezinho de periferia, tem dificuldades de ir além do prazer. Porque ser feliz é viver ao máximo o que se tem, não é buscar o máximo fora de si. Ser feliz não é depender do consumo. Mais que isso: ser feliz é não depender do consumo.

Mas é o consumo que tem marcado a inclusão social, no Brasil. A inclusão dos últimos anos foi em boa medida um aumento do poder de compra a crédito. Os pobres compram mais – o que é ótimo, porque eles tinham e ainda têm acesso limitado a vários dentre os bens que asseguram o conforto. Mas esse foi o eixo mais marcante da inclusão. Embora a educação esteja melhorando, a dupla do bem – que seriam o mix de educação e cultura, e o de saúde e atividade física – não desperta igual atenção nem gera resultados rápidos. Aliás, se fosse outra a prioridade dos governos petistas, eles se teriam defrontado com uma oposição ainda maior. Aumentar o poder aquisitivo injeta dinheiro na veia da economia. Já melhorar o que chamei dupla do bem exigiria mais investimentos públicos, isto é, mais impostos. Não seria fácil nem, talvez, politicamente possível.

Estamos no limite do que pode ser a inclusão social pelo consumo. Beira o ridículo negar a inclusão social promovida pelo PT. Foi substancial. Mas se deu pelo que nossa sociedade consumista mais valoriza. Melhorar radicalmente as escolas teria exigido mais verbas e protagonismo do poder público. O mesmo vale para a saúde, o transporte e a segurança públicos. O choque com as classes mais ricas teria sido forte, porque a exigência tributária teria aumentado. Basta ver como é difícil a Prefeitura de São Paulo arrecadar o necessário a fim de melhorar um pouco os ônibus, para se ter o tamanho do problema.

Com o consumo, o PT escolheu a via do possível. Dificilmente seus adversários teriam feito melhor. Mas a trilha do consumo significa: a ideologia que ganhou foi a do shopping center. Dizia-se há alguns anos que a ideologia dominante numa sociedade é a ideologia de sua classe dominante. Se for verdade, os rolês mostram que a ideologia da classe média, seu “way of life”, seduziram os mais pobres. O que muitos deles querem é estar no mundo da classe média. Não querem romper com ela nem eliminá-la. Querem fazer parte dela, claro que com os ajustes necessários.

Se a classe média não gosta disso, é outra coisa (essa batalha, a “velha classe média” vai perder, e as chances do PSDB estão – como bem entendeu Aécio, mas não os jornalistas favoráveis ao partido – em conseguir ser o partido de todas as classes médias, não só da antiga). Mas a classe média, ou sua maioria consumista, poderia ficar contente. Porque isso significa que os movimentos dos jovens chamados rolezinhos não acreditam que um outro mundo seja possível. O problema é que a inclusão pelo consumo tem um alcance limitado, chega uma hora em que você tem de produzir e não só consumir, e a produção requer hoje competências cada vez maiores, que se chamam educação, cultura, ciência. O engraçado é que também elas podem dar (algum) prazer, mas nossa sociedade, independentemente da classe social, não sabe disso. Prefere o shopping.

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“Para desenvolver as favelas, você tem de desenvolver o empreendedor local” – entrevista de Elias Tergilene, presidente do Grupo UAI, a Carlos Alberto Sardenberg (Rádio CBN, 28/1/2014)

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Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo