Como acontece por vezes com grandes artistas, o acaso foi um aliado decisivo na formulação disso que conhecemos como a obra madura de Eduardo Coutinho, a que começa com “Cabra Marcado para Morrer”, em 1985.
Acaso objetivo: a partir de um filme sobre as Ligas Camponesas que precisou interromper às pressas quando estourou o golpe de 1964, Coutinho voltou ao local das filmagens em 1982, buscou familiares e conhecidos dos personagens.
Com isso, multiplicou o projeto original: fez de “Cabra Marcado” um filme ao mesmo tempo sobre as Ligas e o golpe militar, a perseguição política e o medo.
Mas, sobretudo, fez um filme sobre o tempo: sobre os 18 anos que separavam as duas filmagens. Com isso, introduziu também o que seria um elemento essencial de sua filmografia: a ficção.
Diga-se desde logo: Coutinho nunca foi um praticante ingênuo do documentário, desses que buscam interesse para o filme no “assunto” de que tratam. Era a partir de seu trabalho que o assunto acontecia, tornava-se interessante. Daí a vastidão e a radicalidade de suas experiências.
Beleza e mistério
Como não lembrar, por exemplo, de “Edifício Master” (2002)? Não era mais que um grande edifício no Rio de Janeiro. Coutinho buscou seus moradores, conheceu-os, entrevistou-os (a entrevista era a arte de conhecer pessoas em seus filmes). Não fez uma dessas abjeções que consistem em fazer os espectadores rirem de quem aparece na tela. Longe disso: seu trabalho era precisamente revelar-lhes a complexidade, a beleza, o mistério.
A menos conhecida delas, “O Fio da Memória” (1991), é a que melhor reflete sobre a arte da bricolagem, de buscar elementos do real para criar um objeto original. O que ali fazia seu personagem (e o que fazia o próprio cineasta).
“Santo Forte” (1999) mostrou outra variante de seu talento: ao tratar de religião, permitia a seus personagens mostrarem as ficções que nos compõem.
Algo mais ou menos próximo ao que fez depois em “Edifício Master” e, finalmente, em “Jogo de Cena” (2007), o ápice, onde nunca se sabia quando estávamos numa representação e quando no “real”.
A partir daí, Coutinho abria um novo caminho, convocando a teatralidade com toda franqueza (em “Moscou”, de 2009) ou selecionando as cenas de TV que compõem nosso imaginário e lançando um questionamento sobre o encontro entre essas instâncias (na obra-prima “Um Dia na Vida”, de 2010).
Aonde ainda poderia chegar? Muito longe, ainda. Coutinho era um mestre absoluto e um fumante inveterado com fôlego sem fim.
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Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo