Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eles venceram

O site do Estadão publicou na quarta-feira (19/2) uma importante matéria com o título “Norte-americanos investem para oferecer bate-papo virtual com familiares e amigos falecidos“, tratando da criação de um software ou programa, ou ainda aplicativo, nos moldes do conhecido Skype, para que o usuário possa conversar de forma virtual, digital e eletrônica com seus parentes mortos e outros antepassados.

Tal software, segundo o artigo, é resultado de um projeto desenvolvido no MIT, o famoso Instituto de Tecnologia de Massachusetts, localizado em Cambridge (EUA) e fundado em 1861.

A grande proximidade do MIT ao campus da Universidade Harvard, fundada em 1636 (quase 300 anos antes de nossa famosa USP), faz com que diversos estudos e projetos de pesquisa sejam conduzidos em conjunto através da associação institucional Harvard-MIT Division of Health Sciences and Technology. Assim, é infalível associar o nome desses dois centros do saber com a fama e a reputação que ambos possuem, quando se fala de assuntos relacionados com ciência e tecnologia.

Por falar em Harvard, o jornalista Alberto Dines escreveu brilhantemente no passado recente um artigo neste Observatório no qual ele faz uma leve e bem em passant análise sobre a celebração (na época do artigo) dos 7 anos do Facebook, contra os 372 anos de Harvard (ver “O dia em que o smartphone ficou burro“), discorrendo em curtas palavras sobre o que considerava tempos incomparáveis, lembrando que o Facebook fora criado no campus de Harvard, pelo então aluno Mark Zuckerberg, hoje famoso e bilionário empresário da comunicação virtual, cuja empresa acaba de comprar outra recente mania de comunicação, o WhatsApp.

Considerando o propósito anunciado deste novo software, lembro que o psicólogo e editor da revista Skeptic Magazine, Michael Shermer, que também é diretor da Skeptics Society e colunista da revista Scientific American, disse em sua palestra “Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas?” no Technology, Entertainment and Design (TED), em novembro de 2006, a seguinte frase: “Não há problema algum em conversar com os mortos… Difícil é fazer com que eles respondam!” Não é mais, caro Michael, pode mudar o seu discurso. Essa dificuldade acaba de ser derrotada por pesquisadores egressos do impoluto e reputado instituto acadêmico MIT, segundo nos conta o Estadão.

A contribuição da tecnologia à esquizofrenia digital

Confessando-me profundamente decepcionado com o anúncio do tal software e seguindo nesta mesma linha de decepção com os destinos improváveis e inimagináveis do uso da tecnologia que resulta da brilhante capacidade humana, fiz aqui no Observatório comentários em artigos diversos, inclusive num brilhante texto do jornalista Mauro Malin, observando a constatação deste tipo cada vez mais crescente de invasão de pesquisas pseudocientíficas e non sense no meio acadêmico, quando apontei a publicação, em novembro de 2012, de um artigo de um pesquisador brasileiro (da impoluta USP) na PLOS-One, sob o título “Neuroimaging during Trance State: A Contribution to the Study of Dissociation”. Conforme indicou Mauro Malin em seu artigo neste Observatório (ver “Ciência em tom jornalístico“), a revista Época traduziu na ocasião em sua edição o título do artigo como “Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao estudo da dissociação”.

No referido trabalho científico, dez médiuns brasileiros foram levados a um laboratório nos EUA (passagens e hotéis pagos pelo projeto científico) e submetidos (ou submentidos…) à tomografia por emissão de fótons e a análises de fluxo sanguíneo localizado, em regiões específicas do cérebro, em situações durante transe mediúnico e comparadas com situações sem transe mediúnico, nos mesmos exames. Este estudo revelou uma significativa queda de atividade cerebral dos sujeitos quando em transe mediúnico numa certa região, indicando por outro lado a atividade se concentrando em pontos específicos, quando comparado ao estado de fluxo sanguíneo e atividades cerebrais dos sujeitos fora do transe mediúnico.

No artigo publicado na revista Época sobre a pesquisa há a menção de que “apesar de haver várias semelhanças entre a ativação cerebral dos médiuns estudados e pacientes esquizofrênicos, os resultados deixaram claro também que aqueles voluntários não tinham esquizofrenia ou qualquer outra doença mental”. Ou seja, a área do cérebro que é ativada durante o transe mediúnico é a mesma que é sabidamente ativada em pacientes com esquizofrenia, mas o artigo coloca isso no campo das coincidências apenas, já que o grupo selecionado continha pessoas “seguramente sem qualquer desordem psíquica”.

Vamos à definição de esquizofrenia do dr. Drauzio Varella (drausiovarela.com.br):

“A esquizofrenia é uma doença psiquiátrica endógena, que se caracteriza pela perda do contato com a realidade. A pessoa pode ficar fechada em si mesma, com o olhar perdido, indiferente a tudo o que se passa ao redor ou, os exemplos mais clássicos, ter alucinações e delírios. ela ouve vozes que ninguém mais escuta e imagina estar sendo vítima de um complô diabólico tramado com o firme propósito de destruí-la. não há argumento nem bom senso que a convença do contrário.”

Os argumentos focam os benefícios psíquicos do mau uso da tecnologia

Voltando ao software anunciado pelo Estadão, o artigo evidencia que objetivo essencial do empreendimento é diminuir o impacto da morte e garantir que as pessoas sejam lembradas por seus parentes e amigos queridos. Este argumento apela ao possível conforto psíquico como razão forte o suficiente para tornar este programa disponível a todos que se interessarem.

Seguindo-se a mesma linha de argumentação e raciocínio, seria justo supor que a grande solução aos desafortunados e doentes indivíduos que são viciados em drogas seria a liberação de comercialização de drogas – cocaína, heroína, ópio etc. – para que o mais do que justificável conforto psíquico por elas proporcionado esteja sempre ao alcance destes, independentemente da validade e conveniência das outras terapêuticas disponíveis para esses casos.

Além disso, torna-se difícil enxergar por trás de tal altruísmo tecnológico, que permitirá inimaginável conforto espiritual ao usuário, o quanto essas empresas de software, anúncios e mesmo as companhias de telefonia e serviços de conectividade vão lucrar com a febre de conexão com o além, proporcionada por softwares altruístas e bem intencionados. Os lucros são também inimagináveis. A despeito de qualquer contestação ou confirmação científica sobre qualquer possibilidade de comunicação entre vivos e mortos, o apelo pelo lado do conforto psíquico esconde o nítido desejo de lamentável exploração comercial da fé alheia, a qual arrebata um mercado nada desprezível, pois sabe-se que os milhões de crentes pelo mundo afora serão atraídos pela “inclusão digital” dos parentes mortos e outros falecidos; mais e tudo farão para se tornar consumidores de qualquer método que os coloque em contato com seus entes queridos, sejam os atualmente disponíveis ou mesmo os promissores métodos digitais e virtuais. Isso tudo é perfeitamente compreensível do lado de quem busca esse tipo de conforto, muitas vezes desesperadamente.

A ciência tecnoespiritual

Não há que se estranhar caso esse método se mostre financeiramente lucrativo e moral ou eticamente justificável do ponto de vista do sempre proclamado direito de acreditar no que se queira, causando e estimulando a aparição de outros aplicativos mais especializados, tais como “pais de santo digitais ou virtuais”, os quais devem certamente atrair ainda mais o consumo e a exploração da fé humana. Ou, ainda, como provavelmente já ocorre, o surgimento de perfis no Facebook de pessoas que já se foram, e que podem estar se comunicando com os vivos de forma digital. A grande profusão de confessionários virtuais na internet é um exemplo de utilização tecnológica e exploração, ainda que gratuita, da fé humana, lembrando que nem tudo o que é gratuito é necessariamente altruísta.

Em favor do anunciado software, há como consequência também a derrubada total de argumentos baseados no conhecimento da ciência que se contrapõem à existência da mediunidade, como, por exemplo, ausência de registro de casos de médiuns monolíngues ou monoglotas recebendo comunicação de espíritos que falam outras línguas difíceis e complicadas, como russo, árabe, mandarim, mandarim japonês etc., pois provavelmente o software traduzirá os espíritos virtuais.

E a ionosfera que tanto ajudava a reflexão das ondas rádio e assim permitia a transmissão de sinal a longas distâncias, mas não permitia a reflexão de ondas mediúnicas a ponto de não permitir a comunicação de espíritos das línguas mencionadas com médiuns monolíngues de regiões diametralmente opostas no globo, deixa também de ser uma barreira, já que sinais de satélites e fibras óticas se encarregarão da necessária transmissão tecnoespiritual.

Feitiço contra o feiticeiro

Enfim, é o feitiço se rebelando contra o feiticeiro. Se o MIT um dia gozou do respeito e reputação pelas inúmeras contribuições que trouxe ao mundo, pode estar agora se arranhando de forma irreparável ao ser associado a essa anunciada forma de prestar serviços ao mundo com sua inteligência, pelos seus gênios egressos, quando percebe-se que a grande e nobre resistência do meio acadêmico em direcionar seus préstimos ao improvável, ao místico, ao misterioso e nebuloso obscurantismo, acaba sendo transpassada pela atração lucrativa de exploração comercial do feitiço, tornando esses gênios egressos do MIT meros feiticeiros tecnológicos, apenas pelo valor do vil metal.

Estarei nos próximos dias em Boston e Cambridge, Massachusetts, e com certeza visitarei os honoráveis templos do saber que lá se encontram. E ao olhar sobre os edifícios e construções das universidades, os quais provavelmente estarão encobertos por um possível manto negro, direi: “Eles venceram, e o sinal esta fechado para nós…”

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José Albino é engenheiro