O título acima pode dar a entender que Jaguar, o cartunista mais escrachado do país, está amargurado. Afinal, aos 82 anos, teve que parar de beber, um duro golpe. Mas, em quatro horas de conversa, ele emenda uma piada na outra sem perder o fôlego, ri como criança, chama a fotógrafa Ana Branco de ditadora e, quando ela deixa o local para fotografar um bueiro que explodiu, sugere que gazeteie a pauta: “Bueiro estourado e Jaguar, dá no mesmo”. Sem medo de patrulha, o fundador do “Pasquim”, hoje chargista do “Dia”, dispara contra todo mundo. E desenha, bebe cerveja sem álcool, canta e, apesar da amnésia abstêmia que às vezes interrompe sua fala, passa a limpo, ou a sujo, uma vida que daria livro, filme ou ópera. De vanguarda…
No próximo dia 29 você faz 82 anos. Acontece que fevereiro de 2014 só tem 28 dias. Como é que fica?
Jaguar – Só faço aniversário de quatro em quatro anos. Na prática, tenho 20 anos e meio. Mas ando alquebrado. Este olho esquerdo está caído. Eu ia hoje ao médico dar uma levantada, mas tinha esta entrevista. Estou cansado de entrevistas. Outro dia me ligou uma menina da revista “F,” eu achei que era “S”, aí ela disse: “É ‘F,’ de foda-se”. Eu respondi: “Que modos são esses? Eu sou um velhinho!” Quando chegou aqui, era uma garota de 18 anos, olhos azuis, uma santa. Trouxe 20 pessoas. Veio também o (desenhista e roteirista) Arnaldo Branco, que eu respeito muito. E o Allan Sieber, que dizem que é o maior cartunista do mundo. Bom, o mais tatuado tenho certeza de que é. Mas chega! Esta é minha última entrevista. Ou não… mas é, sim. Depois de sair no Globo, só falo para o “New York Times”.
Há dois anos você levou um susto. Com a bebida. Parou mesmo?
J. – Tive um carcinoma no fígado. Um “Che”. Segundo os exames, está extinto. Fiz muito turismo hospitalar em São Paulo. Agora só vou lá para comer, porque no Rio atualmente se come mal e caro. Se parei de beber? Parei. Agora, só cerveja sem álcool. Quer dizer, tem 0,5% de álcool. Ou seja, de 0,5 em 0,5 a gente pode chegar a um resultado expressivo! Como disse aquele comediante Marcelo Adnet, que também está abstêmio, “é zero, mas pelo menos não é usada”. Boa, né? Mas para quem tomava Underberg depois do café… eu até ganhei uma placa deles, a bebida foi criada no ano do meu nascimento: “Pelos serviços prestados desde 1932”. Na época, fiquei indignado: eu só comecei a beber Underberg com 10 anos!
Essas oito décadas foram bem loucas, não? Para quem quis servir ao Exército e sonhava comandar navio…
J. – Eu entrei para a tropa porque tinha asma e era tão mimado pela minha mãe que achava que ia virar bicha. Meu número, para piorar, era 4-24. Depois, passei para a Marinha Mercante. Quando ia fazer minha primeira viagem, gamei numa guria e larguei tudo. Minha vida sempre foi assim. Como no filme “Match point”, do Woody Allen: a bola no filete da rede. Eu cometi todos os crimes possíveis — pode ser até que já tenha matado gente —, mas acho que já prescreveram. Cometi crimes ecológicos terríveis. No início dos anos 1950, saí do Exército muito doidão e fui dar um rolezinho na Amazônia. Passava os dias tomando cachaça, comendo as índias e dando tiro de chumbinho em macaco-prego. Mas eles não eram inocentes. Invadiam a palafita, roubavam tudo. Rádios, gravadores, comida. Eram alcoólatras. Bebiam nossa cerveja e à noite desabavam na mesa de sinuca, chapadões.
Como anda o Brasil na sua opinião? E o humor, tão importante durante a ditadura?
J. – O Brasil continua uma merda, graças a Deus. Se não, o que seria de mim e dos meus colegas? Mas o humor não serve mais para nada. Quando uma charge, hoje, vai ser um acontecimento? O mundo e a internet assimilaram o humor de uma maneira que virou cocô de mosca. Pode xingar a mãe, falar o que quiser que não faz a menor diferença. E a gente ainda tem que concorrer com os grafiteiros, que agora os críticos chamam de artistas, mas só fazem emporcalhar a cidade e impôr-se. Isso me faz lembrar aquele polvo psicodélico da Tomie Ohtake na Lagoa. O Marcos Vasconcellos, meu amigo, compositor, desenhista, arquiteto, um radical, comprou bananas de dinamite e me chamou para a gente pegar um pedalinho de cisne e explodir aquilo. Declinei. Ainda bem, pois ia matar os mendigos que moravam naquele horror. Mas, voltando ao humor, ele anda muito sério, muito inteligente, sofisticado, mesmo quando é bom. O pessoal não se preocupa em fazer rir. A gente se sente feliz da vida quando consegue entender a piada. Por isso eu mudei. Detestava os Três Patetas. Hoje, adoro aquela coisa de martelada na cabeça, panelada na cara, dente arrancado. É o suprassumo. Mesmo assim, como hoje colaboro com um jornal popular, “O Dia”, sou reconhecido por taxistas e mendigos. Uma caixa de supermercado outro dia viu minha assinatura e perguntou: “Jaguar, o cartunista?” Eu disse: “Como é que você sabe?” E ela: “Eu posso ser humilde, mas me interesso por cultura.” Eu achei tão bonitinho!
Passados os acidentados anos Sarney/Collor/Itamar, tivemos três presidentes: Fernando Henrique, Lula e Dilma. Qual o seu olhar sobre eles?
J. – São todos muito fraquinhos. Está faltando um estadista. Dilma é atrozmente medíocre. “Estresse hídrico” é o cacete. Lula eu conheci levado pelo Henfil, camisa de malha, jeans e Conga. Nunca acreditei nele. É um cara rancoroso. Uma vez me entregou um prêmio no Municipal. Olhou com uma raiva que nunca superei. Fernando Henrique eu entrevistei e depois ele me pediu para acompanhá-lo ao aeroporto. Estava orgulhoso de um relógio que tinha tudo. Dava para ver hora em Marte. Ele disse: “Olha, faz cálculos, tábuas, o diabo. Pode perguntar o que quiser.” Aí eu perguntei: “Que horas são?” Ele ficou pasmo. Não respondeu até hoje.
Quem foi nosso último estadista? Você tem candidato para as eleições?
J. – Eu? Candidato? Eu não voto! A última vez em que votei foi no Brizola. E me arrependi. Sobre último estadista, não sei. Todo político tem um passado sórdido, que vem à tona ou não. Pensando bem, todo mundo. Só sofre quem espera alguma coisa. Mas isso não me deprime. Eu sofro só se não tiver dinheiro para o chope. Como no tempo em que morei num cubículo na Lapa, lado a lado com Madame Satã. Eu vivia com uma filha de santo. Um dia, baixou nela uma entidade que falava grosso como um monstro. Madame Satã veio acudir e cantou pro santo subir. Depois, a mulher me botou para fora. Fiquei na pior até conhecer a Celia (Regina Pierantoni), no Lamas, naturalmente. Ela arrumou minha vida. São 25 anos de casados. Tomou conta de mim. O que eu acho ótimo. É formidável, doutora, referência mundial em saúde pública. Estamos vivendo muito bem.
Você foi muito criticado pela indenização que recebeu do governo, em 2008, por perseguições durante a ditadura. Ficou com dilemas éticos?
J. – Eu não. Eu achei ótimo. Foi o que salvou minha vida. A ditadura me ferrou, perdi emprego, fiquei no miserê. Foi uma iniciativa da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), eu topei. Nunca tive dinheiro, plano de saúde, carteira assinada. Tem gente que é rica e recebeu o triplo. Faço charges há 60 anos e ganho pouco. Nunca saí com pastinha no braço, como o Mauricio de Sousa, nem tenho a energia produtiva do Ziraldo, de quem sou fã. Nunca tiro férias por medo do bilhete azul. No caso da indenização, o que estragou foi o Ziraldo. Tem horas em que é melhor ficar na moita. Ele foi à ABI e fez um auê, esculhambou todo mundo, disse que quem era contra estava botando o rabo entre as pernas. Aí saiu a maior pancadaria, o Elio Gaspari dando porrada em todo mundo. Só podia ser, não é?
Como você se avalia?
J. – Sou um bom cronista de situações. Mas não sei desenhar. Nunca soube. Se tenho que fazer caricatura, copio do Chico, do Angeli, e as pessoas acham que é um estilo. No Brasil, qualquer um que dure dez anos num ofício é considerado grande profissional. Fui um fiasco nas escolas de desenho. Houve um instituto onde eu tinha que desenhar um busto de Voltaire e aí pus uma mosca no nariz dele. Fui expulso.
Bom, mas a mosca é sua essência. O seu gênio…
J. – É a minha deformação profissional. O.k., faço bons cartuns. Hoje a palavra cartunista ficou importante. Todo mundo é cartunista, mesmo os quadrinistas. Só que tudo podia ser diferente. Houve um tal de Brandão, que fez concurso comigo pra substituir o Borjalo na “Manchete”. Ele era meu colega no Banco do Brasil, onde trabalhei. Meu pai era inspetor lá. O Brandão virou bancário… Eu fiquei só um tempo. Bebia a noite toda, chegava às três com minha lambreta. Assinava a “New Yorker”. Entrei por aí, “A Notícia”, “Senhor”, “Pasquim”. Fiz até quadrinhos para O GLOBO. Podia ter virado quadrinista e ganhar tutu, mas dá trabalho… O Quino fazia legendas que eram poesia nas charges. Mas “Mafalda” é uma merda. Eu disse isso a ele, e a chata morreu. Sei lá se foi por isso…
O “Pasquim” foi o auge?
J. – Foi o auge do sucesso. Mas a revista “Senhor” tinha mais qualidade. Paulo Francis, Scliar, Glauco Rodrigues, Bea Feitler. Turma da pesada. Já o “Pasquim” foi só diversão. Até a censura era um barato. Era feita pelo Coronel Juarez, um bonitão, sósia do Gary Cooper. Recebia a gente na garçonnière dele. Pegava o material e riscava a lápis. A gente argumentava. Havia diálogo. O pessoal torcia para chegarem as garotas. Ele apresentava: “Esses são meus amigos do famoso ‘Pasquim’.” Aí liberava as maiores atrocidades! Ele tinha uma turma de coroas na praia, a gente contratou uma loura espetacular de biquíni. Ela levava o material, e ele censurava na praia! E ela, alisando o velho, dizia: “Ah, meu bem, não faz isso, os meninos vão ficar tão tristes…” Ele ficava orgulhoso e liberava.
Já o tempo na prisão (em 1970) não deve ter sido tão divertido…
J. – O quê? Fiquei três meses na Vila Militar. Nunca bebi tanto. Não é piada: foi a fase mais feliz da minha vida. Acordava e pensava: “O que tenho para fazer hoje? Porra nenhuma!” Subornava os guardas para ter cachaça. Bebia do gargalo e jogava num matagal atrás da cela. Consegui ler 60 páginas de “Ulisses”. Depois não retomei. “Ulisses” ou você lê na prisão ou não lê. O Paulo Francis e o (fotógrafo) Paulo Garcez vinham com uns pedaços de pau e apontavam para mim, imitando colonizadores: “Look… this is almost human!” (Olhe… isto é quase humano!) Quando fomos soltos no réveillon de 1970, fui espiar o matagal, e tinha uma pirâmide de garrafas. O coronel responsável vinha perguntar se eu estava sendo bem tratado, eu tinha que tampar a boca por causa do bafo. “O que houve?”, ele perguntava, e eu dizia que era dor de dente. Ele oferecia dentista e eu recusava, explicando que preferia a dor ao dentista. Era tão divertido! Depois o coronel foi exilado para Goiânia porque tinha tratado bem os intelectuais. Coitado.
De que maneira você passa hoje seus dias?
J. – Já li muito, principalmente poesia. Ouço bastante jazz. E fico em casa vendo futebol inglês, espanhol, italiano. O futebol nacional está muito ruim. Eu morei em Santos no tempo de Pelé… Acho que a Copa vai ser um desastre de organização. E não vejo o Brasil batendo os europeus.
O que você gostaria de ter feito e não fez?
J. – Lamento a burrice dos diretores de cinema brasileiros, que não perceberam que sou um grande ator. Em “Natal da Portela”, do (Paulo Cesar) Saraceni, fiz uma ponta, no papel de um comerciante judeu. Só me falaram: Você tem que dizer “Bom-dia, seu Natal!” Procurei um velho judeu e perguntei como ele falava “Bom-dia, seu Natal”, e ele repetiu, com aquele sotaque, até eu aprender. Na hora de filmar, eu digo a fala com um ar servil de estereótipo, e o Milton Gonçalves responde: “Bom-dia é o caralho!” Eu não sabia. Fiz uma cara de espanto. Porra, eu bebia com o Milton e ele me ofende? Depois, fiz em “Tanga (Deu no New York Times?)” o papel de um correspondente americano no país de um ditador, e minha fala era: “E se os marines chegarem?” Minha carreira de ator são nove palavras! Mas foram grandes atuações.
Para terminar, uma análise do jornalismo de hoje.
J. – No meu tempo de redação, de “A Notícia”, eu trabalhava com a garrafa de uísque do meu lado, passava a mão na bunda das moças e dormia em cima da mesa. Hoje é cada um fechado na sua mesa, aquele silêncio total, todo mundo olhando para as telinhas… Fico meio pasmo. Agora, o jornalismo? Sou muito velho. Sou viciado em jornal de papel. Leio três por dia. Gosto de tudo. Dizem que vai acabar, mas não enquanto eu viver.
******
Arnaldo Bloch, do Globo