O jornal O Globo (sábado, 8/3, pág. 6) publicou matéria anunciando a reedição da “Marcha das Famílias com Deus pela Liberdade” para o dia 22 de março, em São Paulo. O movimento é liderado por grupos conservadores que operam nas redes sociais e acreditam que o país caminha para o comunismo. Movimentos anarquistas e “comunistas”, de acordo com a reportagem, organizaram, para o mesmo dia e hora, a “Marcha Antifascista”, e “prometeram levar aos conservadores a verdadeira baderna do povão”. O título da matéria anunciava um “duelo de extremos” para a sexta-feira, 22 de março.
É estranho encontrar gente que ainda acredita em comunismo. É absurdo crer que o Brasil estaria seguindo os caminhos de Cuba, que ainda não sabe muito bem para onde ir desde que perdeu o suporte da extinta União Soviética. Hoje não temos mais uma conjuntura política internacional como a dos anos 1960, quando o mundo ainda acreditava na propaganda soviética sobre suas supostas grandes conquistas sociais. O comunismo já era então uma farsa, ofuscada pelo sucesso inicial dos comunistas russos na corrida espacial. No mundo polarizado da Guerra Fria, a União Soviética anunciava-se ao terceiro mundo como uma alternativa concreta e bem-sucedida ao capitalismo.
Na realidade, a marcha original, que serviu como suporte ao golpe militar de 1964, não foi uma só: em março e abril de 1964 aconteceram vários protestos organizados por setores conservadores da sociedade, assustados com as propostas de João Goulart e temerosos diante da possibilidade de uma virada à esquerda do regime político brasileiro.
Contra o Estado de direito
A marcha anunciada para o dia 22/3 não se sustenta na atual conjuntura política nacional ou internacional: não há mais espaço para a volta dos militares ao poder ou pavor racional do comunismo na sociedade brasileira. O Brasil não é mais o país que era 50 anos atrás, e o mundo também não. O retrocesso de uma possível – mas improvável – volta dos militares ao poder teria um impacto extremamente negativo para o país no exterior. Além de consequências econômicas e políticas imprevisíveis e perigosas. Afora isso, os militares em 1964 tinham outro perfil: conspiravam no Clube Militar e eram bastante politizados. Hoje eles não têm o mesmo papel de destaque na política nacional como no pós-guerra e durante a Guerra Fria.
A organização do Partido Militar e a pressão que alguns setores das forças armadas fazem para viabilizar a candidatura do general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira para a Presidência da República são fenômenos de exceção ligados à atual situação dos salários dos militares, ao sucateamento das forças armadas e à necessidade que parte de população tem de apelar para a “mão pesada” da autoridade para resolver os problemas da nação de forma militarizada, sem oposição, contestação ou protestos. A democracia não funciona assim.
Enquanto isso, as organizações de direita e esquerda preparam suas manifestações: a página do Facebook “Marcha da Família e Intervenção Militar” anunciou que “Intervenção não é ditadura”. Querem o regime militar de volta para evitar que “o Brasil acabe como Cuba ou Venezuela”. Outros fazem enquetes sobre a candidatura do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para presidente da República. Pregam abertamente a derrubada violenta de um Estado de direito. Isso é crime em muitos países do mundo. Mas o “movimento” parece não ter muita força: convidaram 17.920 pessoas, e até sábado (6/2) apenas 1.217 pessoas confirmaram presença.
Notícia irresponsável
No polo oposto, a página da “Ação Antifascista Brasil” mostra um panorama bem diferente. Há rejeição à violência e um nível de consciência crítica mais elevado. Isso sem falar do português bem melhor em quase todas as postagens. O que mais me impressionou foi o post de um rapaz da Escola de Comunicação da UFRJ que demonstrou preocupação com o rumo que a mídia tenta dar às manifestações programadas. A quem interessa um cenário de baderna e violência? Quem vai ser o beneficiado se houver confronto, violência e gente ferida nas manifestações? Quem quer silenciar a voz legítima das manifestações populares transformando-as em terrorismo? Com lucidez, ele pediu paz durante a marcha e o fim das classificações maniqueístas que alimentam o ódio nas ruas. Ele não gosta do nome “Marcha Antifascista”:
“Façamos uma marcha do povo com o povo pela liberdade ou com o lema ‘Ditadura nunca mais’. Vamos superar essas oposições que só perpetuam umas as outras. A maioria que vai nessa marcha conservadora nem sabe o que é fascismo. São coxinhas. Não os transformemos em fascistas.”
O jovem ainda conseguiu fazer uma crítica pertinente ao Globo e seu artigo sobre extremos em confronto, ao denunciar a matéria – que também foi publicada na web (8/3) em versão reduzida. Segundo o estudante, O Globo, com sua manchete belicosa, reforçou extremismos em ambas as manifestações. Segundo o rapaz, o jornal está a “endossar polarizações estagnantes e acríticas”. E este tipo de reportagem “serve a um contexto de radicalização que no passado serviu de justificativa para o golpe militar”.
Louvável a argúcia do jovem estudante. Ele percebeu a armadilha da mídia, que tentou criar uma irresponsável cena de batalha campal por meio de uma notícia provocativa e irresponsável. O momento é delicado e não permite esse tipo de jornalismo insensato.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor