Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Páginas de dor e denúncia

O subtítulo – enxuto como o conteúdo – resume-se a “Relato de uma Busca”. Na verdade, trata-se de um feixe de buscas interligadas, históricas e íntimas, políticas e existenciais, recentes e ancestrais, todas pingando sangue ou empapadas de lágrimas.

Escrito na terceira pessoa, não disfarça a ruminação da primeira pessoa – o narrador, atento e ferido diante da inglória peregrinação empreendida pelo pai à procura da filha torturada e desaparecida nos desvãos da ditadura militar. K é uma vivência literária única. Singular e plural, a misteriosa inicial, remete ao protagonista, ao autor e ao objeto do relato, porém descobrimos que todos somos K. Conhecemos o desfecho e, mesmo assim, prosseguimos com a respiração presa até as derradeiras palavras. Teoricamente um romance, K nos enxota para a historiografia. Qualquer que seja a condição e o ânimo do leitor.

Tragédia e catarse, a brutalidade em estado puro e o absurdo de reinventá-la para torná-la real. Reportagem, denúncia, grito de vingança, pranto engolido, imersão no processo da criação literária. São 182 páginas de dor, um dos livros mais penosos e absorventes que li, ficção-verdade, imperiosamente compartida e partilhável. Letal, ninguém escapa ileso deste registro despojado, comedido, por isso arrasador.

Quieta, mas pulsante

Quando o delegado do DOPS capixaba, Cláudio Guerra, matador profissional assumido, descreveu numa entrevista como deu sumiço nos corpos da professora de química da USP, Ana Rosa Kucinski, do marido, Wilson Silva, e de uma dezena de militantes no forno de uma usina de açúcar em Campos, norte fluminense, ainda não lera a primeira edição de K. Se lesse antes, talvez não conseguisse entrevistar o velhote arfante, agora pastor protestante.

Ao ouvi-lo desfiar com a voz monótona as matanças das quais participou e os detalhes sobre o sumiço dos corpos impôs-se novamente a terrível e hoje corriqueira “banalidade do mal” identificada por Hannah Arendt. A guerra suja da qual participara com tanto empenho não havia terminado, Cláudio Guerra precisava falar, aparecer para que os antigos camaradas não o convertessem em novo desaparecido.

“Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Esta engenhosa duplicidade confessada na advertência inicial confere ao livro palpitação e pungência. O angustiante percurso do judeu errante, Meir Kucinski, para descobrir traços da filha e do genro é autêntico, o repórter Bernardo Kucinski dispensou-se de fabular, ouviu-o do pai, talvez em ídisch (o autor recusa a grafia iídiche adotada pelos dicionaristas) e o reproduziu em vernáculo. K é também um memorial de um idioma liquidado pela Solução Final.

Outros episódios, evidentemente construídos com base em investigação jornalística, são ficcionais, porém tão magistralmente encaixados no relato que alcançam um paroxismo emocional difícil de encontrar na moderna literatura brasileira. Caso de “A Terapia”, em que Kucinski descreve o desabafo da faxineira da “Casa da Morte” em Petrópolis para uma psicoterapeuta do INSS. Naquela tranquila mansão serrana, os presos eram interrogados, torturados, mortos e depois “desaparecidos”. Ana Rosa e o marido, certamente passaram por lá. Cláudio Guerra confirmou que os corpos incinerados em Campos eram originários do Rio de Janeiro.

Os Kucinski, pai e filho, não poupam ninguém: políticos, rabinos, líderes comunitários judeus, sumidades acadêmicas da USP, não escapam sequer os cabeças da resistência armada que insistiram na insurgência suicida mesmo quando a repressão fechara todas as saídas. Só escapa o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que carinhosamente recebeu o pai de Ana Rosa.

Implícita, quieta, porém pulsante, K é uma indagação sobre a condição judaica. A única para a qual o autor oferece uma resposta. Não muito diferente da encontrada por Benedito Spinoza: ser judeu é buscar.

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Alberto Dines é jornalista