Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando lembrar é resistir

Tenho uma filha de quase três anos, Tarsila. Ela está naquela fase em que adora ouvir a mesma história repetidas vezes. Uma das que ela mais gosta é quando eu conto onde ela morava antes de nascer, dentro da barriga da mamãe. Ela pede para eu descrever como era escuro, barulhento, apertado. De como ela decidiu nascer em pleno eclipse lunar. Tão pequena e tão sedenta de passado.

A memória, irmã da tradição, tem esse papel fundamental: manter presente no consciente coletivo o caminho que a humanidade percorreu até chegar ao agora, único tempo em que vivemos. Ao ouvir as palavras do passado, somos capazes de construir nosso presente e saber onde pisamos. E reescrever o que for preciso.

Era exatamente isso que dom Paulo Evaristo Arns, o reverendo Jaime Wright e a equipe do livro Brasil: Nunca Mais ansiavam: escrever a história do horror, para que todos soubessem e para que ela nunca mais acontecesse. Logo na apresentação eles deixam isso claro:

“Que ninguém termine a leitura deste livro sem se comprometer, em juramento sagrado com a própria consciência, a engajar-se numa luta sem tréguas, num mutirão sem limites, para varrer da face da Terra a prática das torturas. Para eliminar do seio da humanidade o flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer razão.”

Banalidade do mal

O Brasil: Nunca Mais expôs o que estava escrito nos processos da Justiça Militar: relatos das torturas durante a ditadura militar (1964-1985). Com riqueza de detalhes, descrevia as sevícias sofridas por militantes, mulheres grávidas, crianças. Denunciava mortes e desaparecimentos de pessoas que estavam sob custódia da polícia. Contava como presos eram usados como cobaias humanas em “aulas” sobre tortura em quartéis. Não havia como negar. A fonte eram os próprios militares. E a história era o que acontecia nos porões da repressão.

Por temer algum tipo de censura, o livro saiu sem nenhum tipo de anúncio prévio, em 15 de julho de 1985. Em uma semana já estava entre os mais vendidos. Apesar de toda receptividade ao livro, o apelo do “Nunca Mais” não foi cumprido. A tortura ainda é prática recorrente. Se na ditadura o inimigo era o subversivo, o comunista, o guerrilheiro, qualquer pessoa que pensasse diferente da ordem imposta, hoje quem padece esse cotidiano na pele são crianças, jovens, homens e mulheres que vivem nas periferias, em geral negros e pobres, a população carcerária e seus familiares, militantes de movimentos sociais, manifestantes.

A continuidade desses crimes deve-se muito à impunidade. O fim da ditadura veio com o sabor amargo de uma anistia que perdoou as vítimas e também os algozes. Mesmo sabendo-se os nomes de torturadores, de médicos que forjaram atestados de óbito, de policiais e políticos que apoiaram a prática da tortura, esses criminosos nunca foram acusados, processados e julgados. Muitos, ainda vivos, se aposentaram e recebem pensão com o meu, o seu, o nosso dinheiro.

Se pela justiça o caminho para o “Nunca Mais” parece mais árido e longo, o da memória não precisa ser assim. É nesse sentido que surgiu o documentário Coratio. Nascido da inquietação de dois jornalistas (eu e Gabriel Mitani) que querem entender por que uma obra tão importante como Brasil: Nunca Mais é tão desconhecida para as novas gerações. E como esse esquecimento favorece a perpetuação da violência. Mal citando Hannah Arendt, o mal se torna banal com a ação de poucos e a omissão de todos os outros.

Fato a fato

Para não nos omitir, decidimos gravar. O que a nos move é um direito básico, que deve ser garantido para todos, sem exceção: o respeito aos direitos humanos. Ninguém, sob hipótese alguma, seja criminoso, policial, jovem, criança, mãe, pai, deveria sofrer qualquer tipo de tortura. A tortura é um dos crimes mais cruéis contra o ser humano. Quebra o espírito, nega a humanidade.

Até agora o documentário foi feito com recursos próprios, mas chegamos a uma fase em que precisamos de um aporte financeiro para finalizar as gravações e fazer um trabalho profissional. Optamos por um financiamento coletivo. Achamos que essa era a melhor maneira de conseguir o dinheiro, porque cada centavo depositado ali é resultado de uma escolha pessoal de alguém que também se sente responsável por esta causa. Se você quiser se engajar nessa luta e saber mais sobre nosso projeto, visite a nossa página: http://catarse.me/pt/coratio

Walter Benjamin, em seu famoso texto sobre o conceito da história, afirma que…

“…somente a humanidade redimida obterá o seu passado completo. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o seu passado tornou-se citável, em cada um de seus momentos. Cada um dos seus momentos vividos transforma-se numa citation à l´ordre du jour – e esse é justamente o dia do juízo final”.

Que possamos nos tornar redimidos, sem medo de trazer à memória cada fato da nossa história, tanto o que pode nos dar esperança, quanto o que nos impele a resistir.

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Ana Caroline Castro é jornalista, doutoranda em comunicação