Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nos passos de frei Tito de Alencar

A prisão de frei Tito de Alencar Lima, jovem dominicano de 24 anos, em São Paulo, na madrugada de 4 novembro de 1969, foi realizada no contexto da violenta repressão que se abateu sobre os religiosos que participavam da resistência à ditadura. Os dominicanos do Convento das Perdizes eram próximos da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de luta armada criada por Carlos Marighella, com a qual colaboravam escondendo perseguidos políticos e organizando a fuga pela fronteira de pessoas procuradas pelos órgãos de segurança. Foi o caso de Franklin Martins e de Joaquim Câmara Ferreira, que saíram do Brasil graças à ajuda do jovem Frei Betto, instalado num seminário do Rio Grande do Sul.

Contar a história de Tito é se debruçar sobre o momento histórico da ditadura civil-militar, instalada em plena Guerra Fria, quando a luta contra o comunismo era a principal preocupação do bloco ocidental lide­rado pelos Estados Unidos. A ditadura, que se instalou com o incrível nome de “revo­lução”, fechou o Parlamento, governou com os atos institucionais e colocou na prisão os opositores políticos que resistiam com ou sem armas.

Frei Tito foi um dos que não se calaram e preferiram combater a ditadura sem armas, com a força das ideias e dos ideais de justiça social. Na Universidade de São Paulo, onde participava ativamente do movimento estudantil, Tito chegou a ter momentos de dúvida e de incerteza sobre a possibilidade de conciliar Marx e Cristo. Assim como ele, outros frades foram encarcerados: eram considerados “terroristas” por terem feito a “opção preferencial pelos pobres” pregada pelo Concílio Vaticano II.

Tempestade de desinformação

O trecho que segue, do capítulo A prisão, narra o fim da Operação Batina Branca, que levou à tortura diversos dominicanos:

Na madrugada de terça?feira, 4 de novembro de 1969, o provincial da Ordem dominicana, frei Domingos Maia Leite, foi acordado por frei Edson Braga de Souza, prior do Convento das Perdizes, que lhe dizia:

– O delegado Fleury está aqui no convento com policiais. Veio prender frei Tito e quer levar você também ao Deops.

Eram três horas da manhã. O provincial trocou de roupa diante de um policial armado, com a metralhadora apontada. Ao descer as escadas, viu frei Tito descendo já algemado, ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este cercara o prédio de madrugada, dando início à “Operação Batina Branca”, que consistia na invasão do Convento das Perdizes e na prisão dos dominicanos.

No claustro, o policial fez o provincial aguardar por alguns minutos, encostado na parede, de mãos para trás.

Fleury deu ordem aos policiais para colocarem frei Tito no camburão dos presos. Frei Domingos foi no carro do delegado, juntamente com frei Edson. Receberam ordem de sentar?se no banco traseiro da viatura, entre dois policiais armados de metralhadoras. Fleury foi no banco da frente, ao lado do motorista. Além de Tito, foram levados o dominicano italiano Giorgio Callegari e frei Sérgio Lobo.

(…)

O delegado Fleury levou frei Domingos a uma grande sala. Eufórico, apresentou?lhe três senhores em trajes civis: um oficial do Exército, um da Marinha e outro da Aeronáutica. Fleury se dirigiu a todos:

– A cabamos de prender os dominicanos. Através deles, vamos pegar o Marighella.

(…)

No interrogatório de Tito, Fleury lhe disse:

– Ivo e Fernando foram submetidos ao soro da verdade e já falaram.

Como o frade continuasse impassível durante duas horas, Fleury mandou levarem Tito para a sala de tortura, onde se encontravam umas cinco pessoas que começaram a lhe dar socos, antes de colocá-lo no pau de arara.

No interrogatório de Frei Betto, preso dias depois no Rio Grande do Sul, referindo-se a Marighella, o delegado quis saber como um cristão pode colaborar com um comunista. Frei Betto, que definira Marighella, momentos antes, como “um homem sedento de justiça, que entregou a vida pela causa do povo”, respondeu:

–Para mim, os homens não se dividem entre crentes e ateus, mas sim entre opressores e oprimidos, entre quem quer conservar a sociedade injusta e quem quer lutar pela justiça.

Os serviços de informação já espionavam os dominicanos meses antes da “Operação Batina Branca”. Com a prisão de frei Ivo e frei Fernando, no Rio, o delegado Fleury montou uma armadilha para Marighella, fuzilado na Alameda Casa Branca, em São Paulo, na noite de 4 de novembro.

No mesmo dia, a polícia distribuiu, como um troféu, a foto do revolucionário morto, dentro de um Fusca. E começou uma batalha de desinformação, narrada no livro:

Mal terminada a emboscada que comandara, Fleury começou a bombardear a imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram ora “terroristas” ora “Judas”. Todos os jornais aderiram à versão de que os dominicanos haviam traído Marighella.

As manchetes associavam as palavras “frades” e “terror”.

O Globo deu na primeira página a fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui se escondiam os terroristas.”

Começava a campanha da ditadura para desmoralizar os dominicanos, responsabilizando?os pela queda do “inimigo público número 1” (cujo nome os jornais grafavam com um único l). A ditadura tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”.

“Os padres comandam o terror que matou Marighela?” (O Estado de S. Paulo – 5.11.69)

“E os frades o traíram. Foi assim.” (Jornal da Tarde – 5.11.69)

“Como Marighela foi traído pelo terror.” (Jornal da Tarde – 5.11.69)

“Marighela encontra seus amigos frades. E depois cai morto.” (Jornal da Tarde – 5.11.69)

“O padre fala. É a sentença de morte de Marighela.” (Jornal da Tarde – 6.11.69)

Ao comentar como a imprensa aderiu à diabolização dos frades construída pelo regime ditatorial, o ex?frade Roberto Romano observa:

“Eles não agiram como jornalistas. Agiram como carrascos e torturadores.”

Nesse quadro, o Jornal do Brasil foi quem deu a manchete mais sóbria:

“Morte de Marighella inicia desarticulação terrorista” (5.12.69).

No meio da tempestade de desinformação desencadeada pela execução de Marighella, o editorial “O beijo de Judas”, publicado no dia 6 de novembro, no jornal carioca O Globo, foi um caso à parte. Poderia ter sido escrito pelos carrascos.

A lógica do sistema

É sabido que a censura controlava todos os órgãos de imprensa e os jornalistas se curvavam às imposições do poder. Naquele contexto, os jornais foram obrigados a assimilar a língua moldada pelo regime na qual os revolucionários eram “terroristas”. Quando um guerrilheiro morria fuzilado ou sob tortura, a imprensa anunciava a “morte de terrorista em troca de tiros com a polícia ao reagir à prisão”. Mesmo que conhecesse a informação verdadeira, era a versão policial que a mídia publicava.

Assim como os nazistas e com os mesmos fins de propaganda, a ditadura brasileira também tentou reconstruir a língua. Nesse projeto de tortura semântica, o golpe de Estado vira “revolução”, os verdadeiros revolucionários se tornam “terroristas”, os golpistas são chamados de “revolucionários” e os que fazem passeatas e manifestações, “baderneiros”. Na Alemanha, a “novilíngua”, criada pelo nazismo e utilizada como meio de propaganda, foi brilhantemente decriptada na obra do filólogo Victor Klemperer, Lingua Tertii Imperii.

Incluído a contragosto no grupo de 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço, que havia sido sequestrado por um grupo de guerrilheiros, Tito de Alencar embarcou em janeiro de 1971 para Santiago do Chile. Mas não encontrou a serenidade fora das grades. Destruído psicologicamente na tortura, banido pela lei de seu país, não pôde recobrar seu equilíbrio. Como o filósofo Jean Améry, codinome do resistente e escritor austríaco Hans Mayer, Tito “não tinha mais seu lugar no mundo”. E como Améry, que se tornou amigo de Primo Lévi em Auschwitz, buscou na morte a liberdade.

Naquele agosto de 1974, o militante político e revolucionário não tinha mais forças para lutar. O jovem poeta e místico, que pensou um dia se tornar eremita, percebeu que não conseguia viver sozinho, em meditação e oração. Levara do Brasil seus carrascos, que lhe invadiam os sonhos e lhe infernizavam os momentos de vigília. Ele, como seus confrades, sabia que não havia traído nem Jesus nem Marighella. Mas, nos seus pesadelos, os carrascos teimavam em repetir a mesma mentira.

“Quem provocou a morte de Tito foi aquele que morava nele, no seu íntimo e que representa, na pessoa de Fleury, um sistema que desde o Brasil se expande para toda a América Latina, fazendo-nos lembrar o que conhecemos na Europa durante o nazismo. As torturas não nascem casualmente, são produto de um sistema e se desenvolvem dentro da lógica desse sistema”, afirmou frère Paul Blanquart, no dia 22 de outubro de 1974, em Roma.

Marca indelével

Para seguir os passos de Tito de Alencar Lima desde o dia em que foi preso até o dia de sua morte, aos 28 anos, num dia de verão, na França, foi preciso ouvir o testemunho dos frades e dos militantes que estiveram presos com ele em São Paulo, mas também de alguns dos setenta prisioneiros políticos que saíram no voo para Santiago, trocados pela libertação do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher. Os frades que o conheceram no Convento de La Tourette, perto de Lyon, eram apenas cinco, em 2012. Em Paris, muitos dos dominicanos que conviveram com ele no Convento Saint-Jacques ainda estão ativos e também puderam testemunhar de sua incapacidade de continuar a viver.

A bibliografia consultada e os refugiados políticos da diáspora brasileira entrevistados permitiram a reconstituição da vida no exílio dos refugiados políticos de diferentes gerações e origens.

O testemunho da irmã de Tito, Nildes, foi fundamental para a reconstituição da vida e do sofrimento do frade no convento francês Sainte-Marie de la Tourette.

O depoimento mais contundente, mais detalhado dos últimos meses de vida de Frei Tito, foi do dominicano Xavier Plassat. O ideal revolucionário, além de uma concepção semelhante do cristianismo, aproximou-os. Antes de conhecer Tito, Plassat já possuía um pôster de Marighella na parede de seu quarto de estudante de Ciências Políticas, em Paris. Depois de acompanhar o corpo de Tito a São Paulo e Fortaleza, em 1983, Plassat emigrou no final dos anos 1980 para prosseguir no Brasil seu engajamento político, a partir de então, na Comissão Pastoral contra o trabalho escravo.

O encontro com o psiquiatra e psicanalista Jean-Claude Rolland, dia 18 de junho de 2011, no V Colóquio da Associação Primo Levi, em Paris, cujo tema era “Linguagem e Violência”, foi determinante para a existência deste livro. Em sua conferência intitulada “Soigner, témoigner” (Cuidar, testemunhar), Rolland analisou o caso Tito de Alencar. Depois da conferência e da projeção do filme Batismo de sangue, baseado no livro homônimo de Frei Betto, houve um debate com o psicanalista e com o realizador do filme, Helvécio Ratton.

Foi ali que Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar começou a nascer. O título do livro é inspirado num texto que Jean-Claude Rolland escreveu sobre Tito, publicado na Nouvelle Revue de Psychanalyse, em 1986. Nele, o psicanalista escreveu: “Não há nenhuma dúvida de que Tito de Alencar morreu durante suas torturas”.

Tito, um homem torturado, com um traumatismo à flor da pele e um sofrimento incomensurável, marcou para sempre Jean-Claude Rolland, que não se cansa de participar de colóquios no mundo inteiro para testemunhar como a tortura pode deixar marcas indeléveis.

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris