Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um modelo de jornalismo investigativo

“Seu olho sempre aberto a todo momento põe a nu as engrenagens secretas da política e força os homens públicos a comparecer, um após o outro, diante do tribunal da opinião pública.” (Tocqueville sobre a imprensa americana, 1835)

É tão profunda a marca deixada pelo caso Watergate que o nome se tornou sinônimo de escândalo político, além de exemplo máximo de jornalismo investigativo. Até hoje se batizam fraudes na administração pública pelo acréscimo da terminação gate, em um eco distante da crise que há mais de três décadas compeliu à inédita renúncia de um presidente dos Estados Unidos, reforçou as prerrogativas da imprensa no sistema de freios e contrapesos da democracia americana e consumou a derrota na Guerra do Vietnã, a única perdida dentre as muitas em que o país se envolveu.

Desde então, jornalistas em todo o mundo se inspiram no modelo profissional que os repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward encarnaram na trabalhosa apuração que se estendeu por mais de dois anos, entre a publicação da primeira reportagem e a queda de Richard Nixon, em agosto de 1974. A atitude inquisitiva diante da autoridade pública, o recurso a fontes não identificadas (e a regra de exigir pelo menos duas delas para confirmar cada informação), o uso maciço do telefone e do bloco de anotações, a obrigação de se apresentar como jornalista, o intercâmbio de pistas com policiais e promotores, o dever de registrar a versão da parte acusada – nada disso foi inventado pelos dois repórteres, mas se tornou canônico em jornalismo depois do caso Watergate.

Às duas e meia da manhã de um sábado, 17 de junho de 1972, cinco homens foram presos pela polícia dentro da sede nacional do Partido Democrata, no opulento edifício Watergate, em Washington. Com os invasores, que envergavam terno e luvas cirúrgicas, foram encontrados equipamentos de escuta clandestina, câmeras e filmes fotográficos. Um deles declarou ser ex-agente da CIA, o serviço secreto do governo americano. Conhecido pela atenta cobertura de assuntos locais, o jornal Washington Post destacou dois jovens repórteres da editoria de Cidades para acompanhar a investigação sobre o arrombamento.

Bob Woodward, então com 29 anos, fora contratado apenas nove meses antes, depois de se graduar por uma universidade de elite, Yale, e servir na Marinha como tenente. Carl Bernstein, 28, era um repórter mais experiente, que não completara o curso superior e andava às turras com seus editores na redação. Um não simpatizava com o outro, ambos lamentaram ter de compartilhar a cobertura. No entanto, a partir da segunda reportagem todas as matérias que fizeram sobre o caso Watergate levaram a assinatura da dupla, por isso apelidada de Woodstein no jornal; suas personalidades antagônicas se entrosaram em uma parceria em que as qualidades de um pareciam corrigir os defeitos do outro.

Bernstein era mais politizado, mais imaginativo e escrevia melhor, conforme o próprio colega cedo reconheceu, aceitando que ele desse o texto final às reportagens. Woodward, de perfil mais metódico e disciplinado, era quem tinha acesso à misteriosa figura que se revelou o informante decisivo ao longo de todo o caso. Bernstein, judeu nascido em Washington, era liberal (jargão americano equivalente a “progressista”) e simpatizante da contracultura, enquanto Woodward provinha de uma família religiosa do interior de Illinois e era um conservador filiado ao Partido Republicano, o mesmo de Nixon. Em termos de estereótipos, um deles era o repórter escolado em engambelar as chefias e se meter nas apurações alheias, ao passo que o outro era o novato prestativo que os colegas acusavam de carreirista. Mas ambos tinham enorme apetite profissional. E foram os primeiros a vislumbrar que Watergate era muito mais do que um simples caso de polícia.

O que as reportagens fizeram foi montar passo a passo, em um percurso realizado com obsessiva persistência, o quebra-cabeça no qual a invasão da sede democrata figurava como “acidente de trabalho” em uma vasta trama de ilegalidades posta em funcionamento pelo governo Nixon. Embora o presidente tenha sido reeleito em novembro de 1972 com mais de 60% dos votos, em uma vitória acachapante sobre George McGovern, o candidato mais progressista jamais apresentado pelo Partido Democrata, a sombra do caso Watergate continuou a crescer sobre seu segundo mandato. As matérias do Postmostraram que os arrombadores mantinham vínculos com membros do Comitê de Reeleição do Presidente, que dirigentes do comitê manipulavam uma verba secreta reservada a operações clandestinas para sabotar e espionar adversários políticos – e que a conspiração era comandada pelo principal auxiliar de Nixon, H. R. Haldeman, o equivalente ao ministro-chefe da Casa Civil.

Conforme as reportagens da dupla encurralavam a Casa Branca e provocavam o afastamento de sucessivos auxiliares presidenciais, outros jornais, revistas e as principais redes de televisão também passaram a dar prioridade à investigação do caso. Em janeiro de 1973, os invasores do edifício Watergate e seus chefes imediatos foram condenados por um juiz famoso pela severidade, John Sirica. Em maio começaram as sessões da CPI do Senado sobre Watergate, transmitidas pela televisão. Em junho um ex-conselheiro de Nixon testemunhou que havia discutido a estratégia de acobertamento do caso com o próprio presidente.

No mês seguinte, outro ex-assessor revelou que o presidente vinha gravando todas as conversas em seu gabinete desde 1971. Após longa queda de braço entre a CPI e Nixon, que se recusava a apresentar as fitas e depois cedeu uma versão editada delas, a Suprema Corte decidiu, em julho de 1974, que a Casa Branca tinha de entregar a íntegra das gravações. No mesmo dia dessa sentença, a Câmara deu o primeiro passo para instalar um processo de impeachment do presidente, por obstrução da Justiça. No dia 8 de agosto, convencido de que seria afastado pela Câmara e condenado pelo Senado, ambos sob controle dos democratas, Nixon renunciou. Deixou no cargo o vice-presidente Gerald Ford, que lhe concedeu anistia no mês seguinte.

Trepidação e maquinismo

O sistema político americano repousa no pressuposto de que todo governo tende ao abuso e à corrupção. Para reduzir o risco, a cada fatia de poder concedida a um ramo do governo corresponde um mecanismo capaz de restringi-la ou revogá-la. Trata-se de um equilíbrio dinâmico em que a balança ora pende para a Casa Branca, ora para o Capitólio, a sede do Congresso. A derrocada da “Presidência imperial” de Nixon deu início a pelo menos uma década de predomínio parlamentar na condução da política americana, além de ter impulsionado a sempre crescente influência da Suprema Corte e consolidado as mais amplas fronteiras para a liberdade de imprensa.

Embora Nixon tenha selado acordos de contenção dos arsenais nucleares com a União Soviética e iniciado uma audaciosa aproximação com sua rival na esfera comunista, a China, ele era um político imbuído da lógica da Guerra Fria. Havia feito carreira no começo dos anos 1950 tomando parte na campanha macarthista, que gerou uma caça às bruxas nos Estados Unidos ao apontar simpatizantes da causa comunista infiltrados no governo e na indústria cultural. O mundo estava dividido em dois blocos irredutíveis, que a paridade nuclear impedia de se confrontarem diretamente, deslocando sua beligerância para as respectivas quintas-colunas domésticas e para guerras civis em países como o Vietnã, onde o governo do Norte era apoiado por russos e chineses e o do Sul, pelos Estados Unidos.

Quando Nixon assumiu a Presidência, em 1969, Washington mantinha mais de meio milhão de soldados engajados em uma guerra distante, impopular e de desfecho imprevisível, que terminaria com um saldo de quase 60 mil americanos mortos. A campanha contra a guerra foi o catalisador que reuniu elementos dispersos da contracultura, o difuso movimento de contestação da autoridade que floresceu no ambiente universitário em meados dos anos 1960 e se projetava na militância pelos direitos dos jovens, negros e mulheres. Pragmático, apesar de ideológico, Nixon adotou uma política de retirada gradual das tropas do Vietnã, ao mesmo tempo que reforçava os bombardeios contra bases da guerrilha comunista e negociava um cessar-fogo que congelasse as fronteiras entre o Norte e o Sul do país asiático, afinal obtido em janeiro de 1973.

O realismo de sua política externa não impedia, contudo, que o governo julgasse impatriótico o movimento pacifista e o considerasse uma ameaça à segurança nacional. Foi a paranoia característica da Guerra Fria, acentuada pela psicologia do próprio Nixon, que levou a Casa Branca a adotar táticas de guerra contra a oposição, escolhendo seus alvos nas lideranças do movimento radical e na ala progressista que então dirigia o Partido Democrata. Nessa frente interna de combate, em parte real, em parte imaginária, o presidente reservava lugar de destaque para a imprensa liberal da Costa Leste, adepta das causas progressistas e sua adversária desde os tempos do macarthismo. O historiador Paul Johnson, simpatizante de Nixon, cita uma frequente recomendação do presidente a assessores: “Lembrem-se, a imprensa é o inimigo”.

Em junho de 1971, The New York Times, o mais prestigioso jornal americano e o símbolo maior da imprensa “elitista” hostil à “maioria silenciosa” que respaldava Nixon, iniciou a publicação dos chamados Papéis do Pentágono. Eram trechos de um volumoso estudo confidencial sobre o envolvimento americano no Vietnã, encomendado pelo secretário da Defesa em 1967. Os documentos haviam sido passados ao jornal por Daniel Ellsberg, ex-funcionário do Departamento de Estado. Sua publicação atestava o flagrante divórcio entre as promessas dos governos pré-Nixon de não expandir a intervenção militar e as diretrizes secretas que vinham aplicando em sentido contrário. Dias depois, o Washington Post também começou a publicar excertos do material, obtidos com a mesma fonte.

O governo tentou sustar a publicação sob o pretexto de que divulgar os relatórios colocava em risco a segurança nacional, mas a Suprema Corte decidiu a favor dos jornais, não por considerar irrestrito seu direito de publicar documentos do gênero, mas por entender que o governo não provara a necessidade do sigilo. O episódio dos documentos do Pentágono é um preâmbulo do caso Watergate. Nixon também invocou o “privilégio do Executivo” de reter informações contidas em suas famigeradas gravações em nome da segurança nacional. Se a alegação era duvidosa no caso de 1971, no de 1974 ela mal escondia que a única segurança em risco era a do próprio mandato presidencial.

A publicação dos documentos do Pentágono também está na origem de Watergate porque a partir de então Nixon se tornou obcecado por reprimir o vazamento de informações para a imprensa. Em setembro de 1971, uma equipe de “Encanadores”, como eram chamados os agentes encarregados pela Casa Branca de “reparar” vazamentos, invadiu o consultório do psiquiatra de Ellsberg, o informante dos dois jornais, em busca de dados embaraçosos sobre seu paciente. Esse e outros tipos de operação clandestina – infiltração de espiões nas campanhas dos democratas e de provocadores em seus comícios, instalação de escutas telefônicas em seus escritórios, difusão organizada de maledicências a respeito de seus líderes – se tornaram habituais até virem à tona com a frustrada missão no edifício Watergate.

Sabe-se que Nixon não foi o primeiro nem terá sido o último presidente americano a autorizar práticas desse tipo (tampouco a gravar as próprias conversas); a diferença é que ele foi flagrado, provavelmente porque, tangido pela obsessão, passou a abusar do recurso a ilegalidades. Com sua queda, os americanos abandonaram o Vietnã à própria sorte, e o país se unificou sob a bandeira de uma ditadura comunista em abril de 1975, quando caiu Saigon (hoje Ho Chi Minh), a capital sulista.

Todos os homens do presidente foi publicado em junho de 1974, dois meses antes da renúncia de Nixon. Mais do que uma reconstituição do caso Watergate, é um relato palpitante da intrincada cobertura jornalística do escândalo tal como vivida pelos dois repórteres, que são os personagens principais de seu próprio livro. Embora eles evitem o uso da primeira pessoa, é por meio do olhar subjetivo de Bernstein e de Woodward que um suposto narrador impessoal descreve as peripécias da dupla. A edição do livro veio a calhar para o ator e produtor Robert Redford, que desde o início da publicação das reportagens percebeu o interesse cinematográfico da história dos repórteres e os vinha assediando com propostas.

Redford comprou os direitos do livro e convidou o roteirista William Goldman e o diretor Alan J. Pakula para fazerem o filme homônimo, lançado em 1976, com o próprio Redford no papel de Woodward e Dustin Hoffman como seu parceiro. O receio de que a película desvirtuasse a narrativa com demasiadas concessões às plateias se revelou infundado. Todos os homens do presidente (All the President’s Men, 1976) é um filme ao mesmo tempo sóbrio e nervoso, que condensa o enredo do livro com exatidão incomum no cinema. A câmera tira grande partido do contraste entre a trepidação jornalística e o peso do maquinismo governamental, entre a atmosfera feérica na colorida redação do Post e os ambientes sombrios onde ocorrem as cenas de arrombamento e as visitas noturnas e furtivas dos repórteres a suas fontes.

Aura empanada

Mas o elemento mais dramático tanto no livro como no filme é o personagem Deep Throat (Garganta Profunda), a fonte de Woodward que desde o início orientou o trabalho dos dois repórteres. A maior parte das conversas da dupla com testemunhas e informantes se dava em background (bastidor), ou seja, as informações podiam ser publicadas desde que atribuídas a uma fonte anônima. (É o que chamamos no Brasil de off the record, sem registro, embora nos Estados Unidos essa expressão implique o compromisso de omitir qualquer alusão a fonte, ainda que anônima.) O amigo secreto de Woodward admitia falar em deep background, “bastidor profundo”, no sentido de que a conversa serve apenas para manter o repórter no rumo certo da investigação. Por causa disso, o secretário de Redação do Post, Howard Simons, batizou a fonte com o título de um filme pornográfico célebre na época. Consta que, além de Woodward, apenas Bernstein e o editor-executivo do jornal, Benjamin Bradlee, sabiam de sua verdadeira identidade, segredo preservado por 33 anos. A proprietária do jornal, Katharine Graham, teria declinado de saber.

Foi somente em maio de 2005 que a revista Vanity Fair divulgou artigo de um advogado amigo da família de Mark Felt, então com 91 anos, confirmando que ele era Deep Throat. Felt fora um devotado agente do FBI, a polícia federal americana, que subiu na hierarquia até chegar a diretor, sempre sob o patrocínio do todo-poderoso J. Edgar Hoover. Mediante uso de informações obtidas ilegalmente, chantagens e intimidação de funcionários públicos, entre eles alguns presidentes da República, Hoover dirigiu o FBI com mão de ferro durante numerosos governos ao longo de quase cinco décadas, até morrer às vésperas de Watergate, em maio de 1972. A sucessão natural dentro do FBI recairia sobre Mark Felt, mas ele foi preterido, como Iago por Otelo, quando Nixon decidiu nomear um homem de seu círculo de confiança para o posto, L. Patrick Gray III. Seja por ressentimento, seja por corporativismo, Felt se tornou Deep Throat, que na calada da noite se encontrava com Woodward na garagem subterrânea de um estacionamento público. Woodward conhecera Felt por acaso, em uma sala de espera da Casa Branca na época em que o futuro repórter servia na Marinha. Sempre interessado em estabelecer conexões úteis, Woodward puxou conversa, um simpatizou com o outro e eles se tornaram amigos eventuais. Felt sempre frequentou a lista de candidatos a Deep Throat. Em uma das conversas gravadas no gabinete presidencial durante a crise, Haldeman, o braço direito de Nixon, diz ao presidente que o autor dos vazamentos sobre Watergate para o Post é Mark Felt. Mas Nixon morreu em abril de 1994, provavelmente sem ter certeza. O enigma só desapareceria de vez com a revelação da Vanity Fair de que os filhos de Felt haviam convencido o pai, cuja acuidade mental já declinava, a admitir o segredo a fim de assegurar seu papel histórico – e talvez a remuneração por possíveis relatos ainda por publicar.

Parece bastante provável que sem a orientação e o estímulo de Deep Throat os repórteres do Post não teriam conseguido levar sua apuração a bom termo e vissem a história minguar, assim como o interesse de seus editores pelo assunto. Por isso, o desvelamento dessa fonte crucial lança uma luz perturbadora sobre a própria exposição do caso Watergate. É plausível vê-la agora como clímax no entrechoque de duas máquinas clandestinas de espionagem e intimidação, ambas incrustadas no aparelho do Estado – uma criada por Hoover e da qual Mark Felt foi o herdeiro no FBI, outra engendrada por Nixon e seus comparsas na Casa Branca.

Um dos métodos usados por Hoover, aliás, era vazar pistas e detalhes comprometedores acerca de suas vítimas para a imprensa, de modo a mantê-las subjugadas pelo terror. O próprio Woodward, depois de a identidade de Deep Throat ter sido anunciada, escreveu que na época tinha a impressão de que Felt o via como um agente sob suas ordens. Que o mais celebrado repórter do jornalismo moderno tenha sido manipulado por um mandarim rancoroso não invalida seu trabalho como jornalista, nem o benefício evidente que dele redundou para o interesse público. Mas recoloca a antiga interrogação sobre quem usa a imprensa e quem é usado por ela. E chama a atenção para a precariedade da cobertura jornalística, ao ressaltar o grau em que ela pode depender de fatores fortuitos para se aproximar da verdade. “Não gosto de jornais”, dizia Deep Throat a Woodward, por causa de sua “inexatidão” e “superficialidade”.

Bernstein tomou a iniciativa de deixar o Washington Post em janeiro de 1977 para se dedicar a uma carreira um tanto errática como jornalista autônomo e escritor. Publicou um artigo em abril de 2006 no qual compara Richard Nixon a George W. Bush para sugerir que este merecia sofrer impeach­ment tanto quanto aquele. Woodward continua no Post, onde ocupa posição semelhante à de editor-associado. A aura de príncipe do jornalismo americano, que só cresceu ao longo das décadas, ficou empanada pelo entusiasmo com que o repórter mergulhou na versão da Casa Branca sobre a Guerra do Iraque, a ponto de se dizer que ele mesmo havia se tornado um dos “homens do presidente”. Seu livro de 2006, State of Denial, aparenta ser uma tentativa tardia de corrigir a credulidade dos dois livros anteriores sobre a reação do governo Bush aos ataques de 11 de setembro de 2001.

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Otavio Frias Filho é ensaísta, dramaturgo e diretor de Redação da Folha de S.Paulo. Publicou, entre outros livros, Cinco peças e uma farsa (Cosac Naify, 2013) e Queda livre – Ensaios de risco (Companhia das Letras, 2003)