Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Minha história de 1964

Além de Marcos Sá Correa, autor do furo jornalístico da operação “Brother Sam”, devo ser dos raros brasileiros que queimaram pestanas sobre os documentos secretos da Biblioteca Lyndon Johnson, em Austin, Texas. Na época, em 1975, eu era conselheiro da embaixada do Brasil em Washington (EUA).

Naquele clima de tímida abertura do general Geisel e incipiente relaxamento da censura, estourara como bomba a revelação, pelo “Jornal do Brasil”, de que o governo americano tinha preparado um plano de contingência para apoiar logisticamente os militares rebeldes, caso houvesse luta prolongada em abril de 1964.

Dias depois da publicação, recebi instruções sigilosas para verificar em Austin o que mais continha de comprometedor o arquivo secreto do presidente Johnson. Como a parte espetacular já havia sido divulgada pelo jornal, concentrei-me nos meses de preparação do golpe e, sobretudo, na colaboração que se seguiu.

Despachei ao Itamaraty quilos de documentos. Até hoje não sei se alguém chegou a ler a maçaroca ou se os papéis se juntaram ao mar morto de arquivos nunca lidos.

O que me impressionou de saída foi a intimidade que se criou entre funcionários americanos chefiados pelo embaixador Lincoln Gordon e a equipe tecnocrática incumbida de planejar o governo Castelo Branco, dirigida por Roberto Campos.

Conflito ideológico

Os EUA estavam de fato empenhados em converter o Brasil numa espécie de vitrina de sucesso da experiência anticomunista inspirada nos melhores padrões das instituições ianques.

Talvez tenha sido uma das primeiras tentativas de “nation building”, de engenharia social para reconstruir um país desde zero. Chegava-se à ingenuidade de discutir em telegrama qual seria o salário das professoras primárias!

Os americanos de então não se pareciam aos trogloditas da era Reagan ou de Bush filho. Remanescentes da Presidência Kennedy, crentes na Aliança para o Progresso, partilhavam com Johnson a fé no ativismo social das leis contra a segregação, dos programas de saúde e assistência aos pobres da “Great Society.”

Mas eram soldados da Guerra Fria, dispostos a pagar, nas fatídicas palavras de Kennedy, qualquer preço e confrontar qualquer adversário para assegurar a liberdade.

Na sua “História da Guerra Fria”, André Fontaine vê no golpe brasileiro a primeira manifestação de uma tendência: o apoio dos EUA a movimentos armados contra governos simpáticos à União Soviética.

Logo depois da derrubada de Goulart, ocorreria o incidente do Golfo de Tonquim, começo da trágica escalada da Guerra do Vietnã. No ano seguinte, a intervenção na República Dominicana, o golpe contra Ben Bella na Argélia e o massacre de 300 mil comunistas na Indonésia dariam sequência à série, que culminaria no golpe argentino de 1966 e no dos coronéis gregos de 1967.

Não foram os americanos que provocaram a polarização e a radicalização da sociedade brasileira. Quis, porém, a fatalidade que coincidisse com o acirramento do conflito ideológico mundial um fenômeno nacional que, em condições diversas, talvez não nos tivesse feito perder 20 anos de democracia.

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Rubens Ricupero é colunista da Folha de S.Paulo