Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Suzana Singer

CASO A: os donos de uma pequena escola e os pais de um aluno são acusados de abusar sexualmente de crianças de quatro anos e de produzir fotos e filmes pornográficos.

O que existe contra eles: depoimentos de várias mães, um laudo do IML atestando que um garoto foi vítima de atos libidinosos e as convicções do delegado que interrogou os acusados.

O outro lado: Todos se dizem inocentes.

CASO B: o dono de uma famosíssima clínica de fertilização “in vitro” é acusado de abusar sexualmente de suas pacientes.

O que existe contra ele: uma investigação do Ministério Público, depoimentos de oito mulheres que não se identificam publicamente e de uma ex-funcionária, que tentou chantagear o médico.

O outro lado: “Seis ou sete mulheres? Tenho 20 mil pacientes”.

Se você fosse editor, qual história publicaria? O caso A, que parece ter indícios mais fortes, ou o B, que se baseia apenas em algumas declarações anônimas?

Quem escolheu o primeiro engrossou o time dos que divulgaram o escândalo da Escola Base, que passou para a história como uma das grandes nódoas do jornalismo brasileiro. Os que assinalaram o caso B podem se orgulhar de ter contribuído para desmascarar o médico Roger Abdelmassih.

No meu currículo, constam A e B. Como editora do caderno “Cotidiano”, fui responsável, há 20 anos, pelas reportagens sobre a Escola Base. Em 2009, estava na Secretaria de Redação quando a Folha noticiou, antes dos outros veículos, as acusações contra o médico.

A comparação entre os dois casos que envolviam denúncias de abuso sexual foi discutida em seminário interno da Folha, que reuniu 172 jornalistas na quarta-feira passada. Na Escola Base, a imprensa fiou-se nas acusações precipitadas de um delegado com vontade de aparecer, que, entre outras coisas, não explicou que era preliminar o laudo do IML que apontou lesões anais no garoto de quatro anos.

A história, que parecia fazer sentido, foi veiculada, com mais ou com menos sensacionalismo, por toda a mídia -apenas o extinto “Diário Popular” não entrou no caso.

Na Folha, graças à obediência ao “Manual da Redação”, as reportagens traziam o “outro lado”, e as acusações apareciam no condicional, o que não exime o jornal de sua parcela de culpa no episódio.

Foi o jornalista Luis Nassif, na TV Bandeirantes e na Folha, quem primeiro defendeu os acusados, que estavam escondidos em casas de parentes e já tinham perdido a escola, depredada em meio ao furor coletivo que exigia punição.

Depois que o delegado foi substituído, a história desmoronou rapidamente. O caso todo durou 21 dias e a conclusão do inquérito foi que os acusados eram inocentes.

Com a memória ainda fresca do fiasco da Escola Base, a cúpula da Redação discutiu muito se deveria levar em frente as denúncias contra Roger Abdelmassih. Era um especialista renomado, acusado por pacientes ricas, que, mesmo tendo sido atacadas, não procuraram a polícia -algumas continuaram o tratamento na clínica, sob a supervisão de outros médicos, para não abandonar o sonho de ser mãe.

A Folha publicou a reportagem de Lilian Christofoletti em 9 de janeiro de 2009 e, no mesmo dia, o telefone começou a tocar. O número de depoimentos contra o médico subiu para 14, depois para 25, 30, 61.

Sem a ajuda da imprensa, talvez o médico estivesse até hoje clinicando. O fim da história é conhecido: Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão, mas fugiu do país.

A comparação entre os casos mostra que é impossível criar regras fixas para determinar o que será publicado e o que irá para a gaveta. Uma boa apuração -reunir o maior número de informações, questionar o que vem da polícia e do Ministério Público, ouvir com atenção a versão dos acusados- ajuda muito, mas, no momento de decisão, ainda entra uma boa dose de intuição.

O importante é ter sempre em mente que, como bem definiu uma das acusadas na Escola Base, “o jornalismo tem o poder de glorificar e de massacrar”. É a força da imprensa que constrói e destrói reputações, para o bem e para o mal.

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Suzana Singer é ombudsman daFolha de S. Paulo