Na sexta-feira (4/4), a Ligue de Football Professionell (LFP) que, dentre outras competições, comanda as duas primeiras divisões do Campeonato Francês, anunciou os vencedores dos direitos de transmissão para as edições de 2016 a 2020 dos principais campeonatos de futebol do país. Acontecimento este que representa o desfecho de uma verdadeira guerra entre dois grupos de comunicação, que recorreram a várias instâncias judiciais para resolverem os problemas que apareciam.
O marco inicial do combate entre o Canal +, que atua também na Espanha, e o catariano beIN Sports veio em dezembro de 2013, mas com o rúgbi. No dia 2, vazou a informação que o Canal + ofereceria 66 milhões de euros por temporada para transmitir o Top 14 para os torneios de 2014 a 2018. No dia seguinte, a Ligue National de Rugby (LNR) cassou o contrato com o canal franco-espanhol.
Aqui começa uma série de diferenças em relação ao que é praticado no Brasil. Por aqui, as empresas de comunicação, clubes e ligas – quando existam – podem entrar com ação apenas no Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade), para denunciar práticas anticompetitivas de alguma das partes. Ainda assim, como no caso das negociações dos direitos de transmissão do Brasileirão, que liquidou com a associação de clubes, não se apresenta como uma prática normal de mercado, carecendo de melhor entendimento sobre como deve ser levada adiante frente ao receio de represálias.
Acusação de manipular uma partida
O Canal + ameaçou e levou a LNR ao Tribunal de Grande Instância de Paris por ter aguardado o valor a ser oferecido e se beneficiar deste preço de reserva. Em janeiro, a liga de rúgbi paralisou as negociações por conta das ações judiciais. Mas no dia 14 de janeiro voltou atrás e anunciou a cessão dos direitos do Top 14 por cinco temporadas para o Canal +, a preço de 71 milhões de euros por ano. Imediatamente, o beIN Sports contestou as condições da negociação, mas nada sobre isso foi alterado até o presente momento.
Enquanto isso, a LFP se aproveitou da intensa disputa entre dois dos maiores transmissores de esportes no país para adiantar a licitação pelos seus campeonatos mais importantes. Ainda com dois anos de contrato com o Canal +, a liga do futebol indicou que abriria concorrência para as temporadas de 2016 a 2020 da Ligue 1 e da Ligue 2, esperando se beneficiar da briga e ganhar cerca de 200 milhões de euros a mais do que vinha recebendo – em meio aos resquícios da crise econômica na Europa.
Inicialmente, o Canal + entrou com ação clamando pelo direito de se beneficiar dos dois anos restantes de contrato. Além disso, pediu ao governo francês que não permitisse que a beIN Sports pudesse concorrer pelos direitos dos torneios por supostamente ter conflito de interesses com um dos clubes, o Paris Saint Germain. Enquanto o beIN Sports é oriundo de uma parceria entre a TV Al Jazira com o Turner Broadcasting System (do grupo Time Warner e que tem parceria com o canal Esporte Interativo no Brasil), o PSG é do Qatar Investment Authority.
Acusação curiosa, já que em meados dos anos 1990 foi uma parceria com o Canal + que fez com que o PSG pudesse contratar vários nomes de peso do futebol mundial, caso do brasileiro Raí, e aparecer no futebol europeu. Num período de grande disputa com o Olympique de Marseille, sob o comando de Bernard Tapie, que conquistaria a Copa dos Campeões da Europa em 1993 – mas que não apareceria na final do Mundial Interclubes daquele ano contra o São Paulo por ter sido excluído em torneios de primeira divisão acusado de manipular uma partida contra o Valenciennes.
Pedidos rejeitados
Em poucas semanas, o ministério dos Esportes arquiva o pedido e o processo segue. O clamor ao governo também é algo que não ocorre no Brasil, dado que as relações entre meios de comunicação e entes estatais se dão nos bastidores em prol da “imparcialidade” declarada dos grupos empresariais da área.
O beIN Sports passa a contra-atacar, buscando os direitos de outros esportes. Em 20 de fevereiro, anunciou a compra dos direitos de transmitir as próximas duas edições dos mundiais de handebol masculino e feminino, 2015 (Catar) e 2017 (França). Semanas depois, anunciou a compra dos direitos para a liga francesa do esporte, o D1, por cinco anos e a quatro milhões de euros por temporada.
No dia 6 de março, a LFP colocou à venda a Ligue 1 e a Ligue 2 um ano antes do esperado. Também diferente do Brasil, que prezava por contratos para diferentes mídias, há lotes específicos colocados em leilão. O Lote 1 fornece os dois melhores jogos por dia mais duas revistas semanais (Jour de Foot e CFC), sendo esperadas as melhores propostas qualitativas e financeiras. O Lote 2 dá direito a uma partida por dia, mais o Top 10. O Lote 3 dá direito à escolha entre as outras sete partidas por dia de rodada, sendo três em atraso (sexta às 20h45, sábado às 17h e domingo às 20h) e 12 jogos a serem escolhidos que podem ter cotransmissão. O Lote 4 é dedicado à transmissão em multiplex. O Lote 5 permite a veiculação de resumos quase ao vivo. E o Lote 6 é dedicado à venda de vídeos por demanda.
4 dias depois, o Canal + aciona o concorrente por suposta concorrência desleal, com perdas de 187 milhões de euros em assinantes para o beIN Sports, sendo solicitados 293 milhões de euros na ação judicial. No dia 16, contesta na Autoridade de Concorrência francesa o concurso para as divisões do campeonato francês, por “borrar a visibilidade e sua oferta para os assinantes”. Além de pedir a suspensão da concorrência no Tribunal de Grande Instância de Paris. Todos os pedidos foram rejeitados, tendo o ápice no dia 01 de abril, quando a Corte de apelação de Paris rejeitou últimos pedidos de adiamento da licitação.
As barreiras da Rede Globo
No dia 23, foi a vez da Orange e da Eurosport protestarem pela antecipação da concorrência, especialmente, no caso da Orange, por não constar a abertura de negociação para a veiculação em tablets e celulares. Em 2 de abril, data marcada para recebimento das propostas, cinco grupos participaram da concorrência, apesar das tentativas judiciais: Canal +, beIN Sports, Eurosport, Orange e o grupo L’Equipe.
Compara-se com o caso brasileiro que, em meio a indicações por parte do Cade de como deveria ser a concorrência pelos direitos de transmissão em TV aberta do campeonato nacional, a Rede Globo desistiu de participar do certame, optando por negociar em separado com os clubes. O que levou à desistência de concorrentes como Record e SBT.
O anúncio da sexta-feira foi que a LFP conseguiu 748 milhões de euros por temporada, sendo 726,5 para a Ligue 1 e 22 para a Ligue 2. O Canal + passou a pagar mais, sendo o grande vencedor da disputa. Serão 265 milhões de euros pelo lote 1 da Ligue 1 e 275 milhões pelo lote 2, no total de 540 milhões de euros por temporada. Já o beIN Sports pagará 160 milhões de euros pelo lote 3, e um total de 26,5 milhões de euros pelos lotes 4, 5 e 6, além 12 milhões de euros pelo lote 1 da Ligue 2, que teve seu segundo lote adquirido pelo Canal + por 10 milhões de euros. O Eurosports, que transmitia a Ligue 2, não poderá transmitir o torneio a partir de 2016.
Ao contrário daqui, na França a associação de clubes não só seguirá organizando o torneio, como se aproveitou da disputa no mercado de TV para ganhar bem mais em meio aos resquícios de crise na Europa. Como discutido no que tange à concorrência, neste caso de produto que necessita de mais de dois produtores (um clube tem que enfrentar outro), o melhor é colocá-lo à venda de forma coletiva. Além disso, o atual detentor tentou em várias instâncias judiciais adiar a concorrência, mas não conseguiu, e, entretanto, não deixou de participar do processo.
Estas diferenças também refletem a diferença no posicionamento jurídico em termos de concorrência no Brasil para esses casos, ainda que o desfecho de 2010 seja especialmente emblemático e importante para nós por ser inédito. A Europa debate este tema em suas instâncias de concorrência desde a década de 1990, quando as empresas privadas que atuam no mercado de comunicação após a abertura na década anterior apostam nos esportes como atrativos de audiência, aumentando os rendimentos para estes.
Também não se tem uma concorrência real no mercado brasileiro para isto, frente às fortes barreiras estabelecidas pela líder Rede Globo para diferentes mídias, assim como a concorrência com o capital estrangeiro não se apresentar em condições financeiras reais – que indicaria prejuízo para o ente local. No caso da TV aberta, principal nicho publicitário, não há ente estrangeiro e nem é possível. A empresa não pode ter mais de 30% do seu capital de fora do país.
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Anderson David Gomes dos Santos é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação