Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Caos, chavismo e uma telenovela

Como escritor em Caracas nestes tempos caóticos, vivo em dois mundos diferentes. Durante o dia, escrevo roteiros para uma telenovela, uma coprodução mexicano-venezuelana para a Telemundo. À noite, redijo comentários políticos, principalmente para o “Tal Cual”, um dos poucos jornais oposicionistas que restaram na Venezuela. Levei 30 anos para compreender que as telenovelas são uma metáfora dramatizada do populismo latino-americano. Essas atrações lidam não tanto com o amor não correspondido, e mais com mitos de redenção social tão imortais quanto o de Evita Perón.

O tema mais frequente prescreve a redistribuição de riqueza entre os pobres, com pouca consideração sobre como essa riqueza é criada, o que explica muito sobre a história recente da Venezuela e seu estilo peculiar de socialismo, conhecido como chavismo. Muitos populistas demagógicos latino-americanos propagaram desde 1930 essas “soluções” inspiradas em Robin Hood para a pobreza e as injustiças.

Eu queria escrever uma história diferente, a história de uma moça, uma empreendedora, que ascende da pobreza para a prosperidade por meio da inovação, da astúcia, de um pouco de capital inicial e de muito esforço. O fato de a América Latina abrigar 17% das start-ups do mundo tornou a ideia palatável para os produtores.

Última escaramuça

No início de janeiro, nossa produção se cruzou com uma tragédia verdadeira. Mónica Spear, 29, atriz e modelo que era a candidata mais cotada para o papel principal, de Nora, e seu marido, um britânico, foram mortos a tiros em um trecho ermo de uma rodovia litorânea. Foi o tipo de assassinato chocante que normalmente nem é noticiado em um dos países com mais homicídios na Terra, mas desta vez a imprensa não poderia ignorar uma vítima que era uma ex-miss Venezuela, baleada diante da filha de cinco anos, que ficou ferida na perna, mas sobreviveu.

Nas gravações de “Nora”, México, Colômbia e Venezuela, três países infestados pela violência endêmica, estão representados no elenco e na equipe de produção. Durante um intervalo, escutei uma espirituosa atriz mexicana parafraseando a frase de abertura de “Anna Karenina”, de Leon Tolstói: “Todos os países pacíficos são iguais, mas cada país latino-americano violento é violento à sua maneira”. Na Venezuela, a violência é provocada por gangues que eram, originalmente, organizadas ao redor de pequenos pontos do tráfico de drogas nas favelas. Um desses bandos assassinou Mónica Spear.

Muitas dessas gangues foram cooptadas pelo governo chavista e receberam um nome inócuo: coletivos, uma palavra enganosa com subtexto progressista de solidariedade comunitária.

Na realidade, os coletivos são agora temidas forças paramilitares que, usando motocicletas, perseguem manifestantes de rua e são responsáveis por muitas das mortes durante os recentes protestos. Essa violência parece distante dos luminosos estúdios com ar-condicionado onde nossa novela é produzida, mas a escassez de produtos essenciais, inexplicável em um opulento petroestado, afeta a todos nós.

De vez em quando, a gravação é interrompida porque um membro do elenco ou da produção recebeu uma mensagem de texto avisando que algumas mercadorias estão disponíveis em um supermercado das imediações. O estúdio se esvazia antes que o estoque racionado de óleo de cozinha, papel higiênico, leite ou farinha de milho acabe.

Muitos atores venezuelanos de novela também têm um trabalho extra à noite no teatro, mas os sequestros e assaltos desenfreados provocaram um toque de recolher melancólico, autoimposto, na vida noturna de Caracas, limitando aquilo que os atores podem fazer fora do estúdio.

Num momento em que grandes teatros começam a fechar as portas, alguns atores decidiram ler seus papéis em praças públicas. As falas provêm de “Jazmines en el Lídice”, premiada peça de Karin Valecillos, uma das autoras de “Nora”. Ela fundamentou a obra nos depoimentos de 44 mães venezuelanas que perderam filhos para a violência dos criminosos.

Escrevo um artigo opinativo semanalmente para o “Tal Cual”, corajoso tabloide que Teodoro Petkoff fundou em 2000, no começo da era Chávez. Petkoff, 82, é um ex-comandante guerrilheiro venezuelano que repetidamente escapou de modo espetacular de prisões nos anos 1960 e, por fim, deixou o Partido Comunista para escrever denúncias vigorosas da ocupação soviética da Tchecolováquia e do stalinismo.

Petkoff, que tem ascendência búlgara, se tornou um ícone para revisionistas marxistas latino-americanos quando ele e um pequeno grupo de ex-jovens comunistas fundaram um novo partido em 1971. Seu ativismo político terminou quase 30 anos depois, quando deixou o partido em protesto contra a decisão de designar Hugo Chávez como seu candidato na eleição presidencial de 1998. Ele, então, iniciou uma nova carreira -aos 68 anos- como editor fundador do “Tal Cual”.

Apesar de sua pequena circulação, o “Tal Cual” rapidamente se tornou o mais influente jornal opinativo da Venezuela. Divulga o estilo pessoal de textos social-democratas e centro-esquerdistas de Petkoff, bem como vozes mais conservadoras da oposição democrata. Petkoff combate incansavelmente o regime de Chávez e de seu sucessor.

Em decorrência da última escaramuça, ele pode pegar quatro anos de prisão e multas de milhões de dólares se for considerado culpado numa ação por difamação movida por Diosdado Cabello, o segundo homem mais poderoso da Venezuela.

Petkoff admitiu em um editorial que o “Tal Cual” repetiu um erro veiculado por um site noticioso, mas Cabello não ficou satisfeito e levou o caso adiante.

País real

É inspirador observar o confronto do velho com Cabello. Ele já se prepara para colocar seu conteúdo na web caso o governo cumpra suas ameaças de silenciar o “Tal Cual” cortando seu suprimento de papel. “Passaremos a sair on-line”, disse ele à equipe da redação. Em uma recente entrevista de rádio, ele disse: “Não rompi com o comunismo no século passado para terminar endossando qualquer outra forma de tirania neste.”

Enquanto escrevo isto, posso ouvir a rotina noturna das cápsulas de gás lacrimogêneo e dos projéteis de chumbo atirados pelas forças antidistúrbios no bairro de Chacao, perto daqui. Tudo acontece na escuridão, quando a Guarda Nacional invariavelmente impõe um blecaute ao reduto dos manifestantes jovens e inflamados, antes do avanço dos tanques blindados.

Eu me pergunto como Nora se sairia como empreendedora na Venezuela real, um país que está em 175° lugar no índice de liberdade econômica, um indicador internacional, acima apenas da Coreia do Norte, de Cuba e do Zimbábue. Minha aposta é que ela iria para as ruas e se juntaria aos manifestantes.

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Ibsen Martínez é dramaturgo e romancista. Seu último livro é Simpatía por King Kong