Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Globo deixa de pisar em ovos

Não era apenas a paródia de comerciais que nos faria ver o novo humorístico da Globo, Tá no Ar: A TV na TV, como algo que remetesse ao velho e politicamente incorreto TV Pirata. Era, viu-se anteontem, quando o programa entrou no ar, a própria volta do politicamente incorreto que nos faria lembrar daqueles dias em que ainda testávamos os limites do fim da censura, em 1989. O novo humorístico da emissora, criação de Marcius Melhem, Marcelo Adnet e do diretor Maurício Farias, resgata a acidez do riso na tela da Globo, em horário proibido para menores de 18 anos.

O aviso está dado pela Classificação Indicativa, mas nem as crianças que por acaso sobraram na sala poderão se queixar de não ter achado graça num Silvio Santos que aparece de repente, na pele de Adnet, perguntando: “o que é que eu tô fazendo nesse canal?, ôi!” Nem da Galinha Preta Pintadinha, versão do hit infantil da Galinha Pintadinha, com letra que ensina receita para macumba.

Sim, falaram em macumba, mas um personagem divertido soube dar voz ao telespectador que por ventura se chocasse com o possível desrespeito religioso diante da tela. É Adnet, vestido de intelectual com sotaque nordestino, dono de vocabulário acadêmico, que faz as vezes de crítico da “Rede Globo de Televisão”, essa emissora que insulta os “afrodescendentes” de forma tão acintosa e também as galinhas deste país, tão maltratadas, fala.

O crítico apareceu para pontuar cada piada que talvez pudesse ser mal digerida por um público que já estava se acostumando àquele humor engessado. Certo é que ninguém ficou anestesiado diante do Tá No Ar. Adnet e Melhem fizeram piada com a celeuma que sempre houve, na Globo, em citar os nomes de outros canais, e falaram em SBT e RedeTV!, quando foram interrompidos.

Diversão com acidez

Algumas imagens ficaram no ar por dois segundos, tempo de um desenfreado zapping, o que evidencia o tamanho do trabalho de produção. Imagine-se o que é maquiar o elenco, preparar o set, selecionar a música, para usar tudo aquilo por tempo tão curto. O próprio Silvio Santos foi cena muito breve.

Já o Dr. SUS, seriado que usa a fama de Dr. House, da série americana, para debochar do sistema público de saúde brasileiro, ganhou mais tempo em cena. Para o médico, todos os doentes tinham “virose”, mesmo os atropelados e enfartados. Como o médico da série original, Dr. SUS dispensava exames.

A série “Pesca Fatal”, piada do patético, ganhou várias inserções, mostrando sempre um pescador no meio de um rio, sem qualquer risco ao ofício. Houve o momento Datena/Marcelo Rezende, com evidente referência aos dois, e também a campanha Fiança Esperança.

A edição se encerrou com um rap muito bem trabalhado por Adnet, no papel de Jesus Cristo, ao lado dos apóstolos e algumas dançarinas comportadas. Dizia que “na hora em que a casa cair / eu vou voltar” e fazia referências ao sujeito que pode tudo porque é “filho do dono”.

Entrevistas de mentirinha, no encerramento, tratavam de debochar então do próprio programa. “Ainda bem que mexeram com candomblé, e não com a minha religião”, disse uma mulher supostamente entrevistada, dando a entender ser evangélica. Outra nos fez rir ao criticar o próprio Adnet –”ele era bem melhor na MTV”, ela diz, repetindo uma crítica que o humorista tem recebido desde que estreou na Globo, há um ano.

Com Tá no Ar: A TV na TV, a Globo parece enfim despertar de longo período de marasmo no riso. Do TV Pirata para cá, muito deboche passou também pelos duradouros anos do Casseta & Planeta, mas o programa foi se oprimindo com uma lista de vetos que dizia mais respeito à autocensura do que às amarras da classificação indicativa imposta pelo Ministério da Justiça e às militâncias religiosas ou políticas. A volta de sátiras a comerciais é um bom exemplo disso. Só no episódio de estreia, houve paródias da Nextel, do posto Ipiranga e da carne Friboi, com claras referências aos anunciantes originais.

Talvez o Porta dos Fundos, trupe de humor que atrai milhões de cliques à internet há um ano e meio, tenha endossado que há público disposto a se divertir com alguma acidez, sem que isso implique desrespeito a quaisquer minorias.

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Cristina Padiglione é colunista do Estado de S. Paulo