Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Medida ganha tom de ‘revolta da vacina’

Em 1904, a imunização obrigatória contra a varíola colocou o Rio de Janeiro e a opinião pública nacional em polvorosa com a polêmica que levou ao que ficou conhecido como “Revolta da Vacina”. Até hoje, o fato histórico, lembrado pela inabilidade governamental de vacinar as pessoas à força, é tratado como um exemplo transparente de como uma atitude autoritária pode colocar mesmo ações positivas a perder. Medo de tomar vacina por conta dos possíveis efeitos colaterais faz parte do imaginário coletivo, abastecido, por vezes, por boatos e tabus. A cada campanha, aparecem aqui e ali histórias que contradizem o efeito que se espera. Cento e dez anos depois do grande rebuliço do início do século 20, o tema da vacinação ganhou ares de polêmica na opinião nacional por razões morais e o jornalismo pode não ter aproveitado para tratar dessas questões e trazer cobertura equilibrada e informativa. A vacinação contra o HPV (de prevenção contra câncer no colo do útero) foi abordada intensamente pela mídia brasileira e tratada como polêmica depois da medida do Ministério da Saúde que liberou gratuitamente o medicamento para meninas adolescentes.

A primeira fase da vacina já acabou. Mais duas fases serão realizadas ainda. A segunda está prevista para maio e a terceira para setembro, quando o assunto deve voltar ao noticiário. O governo comemorou o resultado. No Distrito Federal, por exemplo, a meta era vacinar 80% das meninas e o alcance foi de 79%. Porém, centrar cobertura em uma polêmica superficial e restringir o quadro de fontes a executivos do próprio ministério podem ter deturpado o entendimento da questão. Ora, não aceitar a vacina foi tratado como ato ignorante, de religiosos bitolados ou de machistas intratáveis.

Se existiam na sociedade temores, preconceitos latentes, ou até novos registros científicos, por que não tratar deles? Por que não aproveitar as opiniões para aprofundar questões? Não aqui restritas a classes sociais ou correntes filosófico-religiosas. Se as meninas precisam se vacinar antes do início da vida sexual (e sim, a maioria terá), não seria o caso de descortinar todo e qualquer pensamento, compreendê-lo e colaborar com a comunicação pública? Se grupos sociais têm dúvidas sobre a imunização, que os trate abertamente, e não apenas aponte essas pessoas como fundamentalistas religiosos ou machistas de plantão. Uma patrulha, como se pôde perceber, com olhar elitista e fabricante de estereótipos.

Falta densidade informativa

A se restringir a um objeto de análise, foram escolhidos materiais que trazem a plataforma mais moderna, a internet. Três reportagens do site do Correio Braziliense sobre o assunto no Distrito Federal foram analisadas e nenhuma delas apresenta “camadas” de “contextualização” e “exploração” da “pirâmide deitada”, proposta de estrutura do jornalismo online explorada pelo autor português João Canavilhas (2008).

Na prática, a amostra traz um fato puro, baseado em declarações de fontes oficiais, não abrindo reflexão sobre o tema. Há uma unidade base (o primeiro parágrafo onde tradicionalmente são reproduzidas informações “principais”) e alguma explicação sobre o enunciado, normalmente por intermédio do interlocutor oficial. As explicações sobre o que é o HPV, por exemplo, só são fornecidas no primeiro dos três textos estudados. O repórter poderia abordar mais sobre o câncer de colo de útero como, por exemplo, números de casos no Brasil e tratamentos oferecidos. Outro autor português, Joaquim Fidalgo (2007) aponta que o jornalismo digital poderia oferecer maior densidade informativa ao leitor. Além do mais, tem se como premissa que o espaço online é infinito dando mais chances ao jornalista de investigar temas que, de nenhuma forma, podem ser tratados como consenso.

As três reportagens apresentam apenas a versão oficial dada pelo governo do Distrito Federal em relação à doença. Faltam fontes que vão contra a vacinação, como pais de meninas que não autorizaram as filhas a serem vacinadas – o próprio texto explica que no Distrito Federal 20% meninas não foram vacinadas no Brasil e 5% no Distrito Federal –, meninas que tomaram a vacina e opinião de médicos sobre o assunto. Se aplicarmos o conceito de Fidalgo, não há densidade informativa, ou seja, grande número de fontes e diversidade de opiniões. Sobre a diversidade temática, os autores poderiam captar a complexidade das opiniões “retrógradas”. Outro conceito que pode ser aplicado é o da “resolução semântica”, que tal como uma imagem que precisa de maior definição, a informação necessita de aprofundamento para que não vejamos uma “imagem” quadriculada e sem detalhes.

Comunicação é o que se entende

Se se espera um aprofundamento, o que não dizer quando não se tem nem ao menos uma apuração simples. Na notícia “Campanha de vacinação contra HPV começa na segunda nas escolas do DF”, a informação dá conta de que a imunização é para meninas de 9 a 13 anos. Na segunda, “Distrito Federal é modelo para campanha nacional de vacinação contra HPV”, a vacina seria destinada a meninas de 10 a 13 anos. E na terceira, “Primeira dose contra HPV imuniza 92% das meninas do Distrito Federal”, o público-alvo é o de garotas de 11 a 13 anos. Pelas informações que constam no Ministério da Saúde, a vacinação contra o HPV é para meninas entre 11 e 13 anos e a partir de 2015 para meninas de nove a 13 anos.

Se as próprias notícias não se conversam, é possível deduzir que estão longe ainda outras abordagens mais delicadas: como as escolas privadas e públicas têm tratado o tema em sala de aula, assim como dentro de casa, nas igrejas, nos postos de vacinação… Se a ciência já tem um abismo natural para se comunicar com os mais diversos setores, haveria de se esperar que o jornalismo fizesse uma ponte mais humana, que se contextualize mais eficazmente, já que a comunicação não é o que se fala, mas o que se entende. O jornalismo pode e deve ser aquele que ajuda a bater na porta, traz os grupos à conversa, e não aquele que entra porta adentro para vacinar à força. Afinal, as notícias e as informações não são agulhas a furar a pele, mas o que elas significam.

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Marlice Pinto e Luiz Claudio Ferreira são, respectivamente, estudante e professor de Jornalismo