Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Brasil não merece o Ipea

Instituto de pesquisas precisa ser devolvido ao Estado pelo governo. Quantas pessoas você conhece? Quantas você julga que poderiam achar que mulher merece ser estuprada? Se a resposta for algo como “poucas”, onde estão os abomináveis seres retratados pela pesquisa que sacudiu as redes sociais nas últimas semanas? Repudio e critico algumas características de nosso povo – como a inaceitávelideia de que é lindo levar vantagem sobre tudo e todos (a famigerada Lei de Gerson) –, mas não creio que a pesquisa, mesmo após a correção, corresponda à nossa realidade. Contudo, antes dessa correção, as pessoas simplesmente afirmavam que o Brasil é assim mesmo. Ignoravam que não se deve afirmar o que outro ser pensa baseado em algo que você “acha”.

Fica evidente que algumas pesquisas nascem a partir do resultado, para justificá-lo – e não para obtê-lo. Até ao retratar-se, o Ipea mantém o caráter amplamente parcial, reafirmando “contudo, os demais resultados se mantêm, como a concordância de 58,5% dos entrevistados com a ideia de que se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. É esse o papel do instituto hoje?

A pesquisa é uma afronta, tanto pela qualidade da amostra quanto pela tendência das questões. Entre as propostas, todas sob o formato “O entrevistado concorda?”, destaco uma: “Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama”.Considerando que a maioria dos entrevistados (66%) era de mulheres, não faltou uma contraposição do tipo “Tem homem que é só pra cama”?

Noticiar primeiro

Isso não deveria sequer estar em discussão. Há pessoas (algumas maldosas, outras ingênuas) que pensam assim, mas é completamente distorcida a ideia de que uma vítima seja culpada por qualquer crime. E estupro é o mais covarde deles. E discussão não leva à conscientização, como fora amplamente propagado. Ou alguém realmenteacha que há estupradores atendendo apelos feministas e, finalmente, compreendendo que não deveriam violentar ninguém?

Houvesse uma pesquisa com estupradores, creio que muitos deles não acham que a vítima merecia. Mas é apenas “achismo”, não vale nada, claro.

A pesquisa do Ipea comprova: imprensa brasileira não sabe, tem preguiça ou não quer ler. A pesquisa do Ipea era absurdamente falha, tanto em sua formulação quanto pela amostra obtida. Foi corrigida. E continua absurdamente falha. Vários especialistas discordaram dos métodos (tanto na qualidade da amostra quanto na formulação) e a imprensa “escolheu um lado”. Aquele que dá mais Ibope, por coincidência.

Qualquer estudante alfabetizado sabe que 66% de mulheres não podem representar a opinião de uma sociedade composta por 51% de mulheres, claro. Tal distorção ao observar o gênero dos entrevistados é gritante. A partir disso, vasculhar os demais dados seria o caminho óbvio. Porém, noticiar primeiro pareceu mais importante. Assim, a pesquisa serviu apenas para evidenciar o quanto é fácil formar opinião no Brasil. Somos preguiçosos consumidores de informação filtrada. Grande parte das publicações não citou sequer a porcentagem de mulheres. Nenhuma citou a escolaridade.

A pirotecnia utilizada para evidenciar uma minoria (mais uma!) oprimida foi de uma falta de sensibilidade que jamais havia presenciado – “nuncantisnahistoriadesspais”. E a maioria dos veículos já mostrou a presidente em defesa dessa minoria. É tanta minoria que a maioria já não representa muito. Matemático algum consegue explicar. O Ipea, melhor nem pensar…

Manipulação e ingenuidade

Segundo o próprio documento da pesquisa explicita, em relação à frase “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”, “católicos têm chance 1,4 vez maior de concordarem total ou parcialmente com essa afirmação, e evangélicos 1,5 vez maior”.

Conforme o IBGE, católicos e evangélicos são 86,6%. Entre os entrevistados pelo Ipea, eles são 90,4%. Deixou-se assim, de ouvir 3,8% de não-religiosos (ou de outras religiões). Por consequência, foram ouvidos 7,6% mais religiosos que o devido para estabelecer uma média do povo brasileiro. Trata-se de um desvio imperdoável para qualquer pesquisa séria! E não é o único. Ao verificar o sexo dos entrevistados, o desvio é ainda maior: acima de 30%. Também há desvios quanto à idade e escolaridade dos entrevistados.

É estatisticamente inviável acreditar que uma pesquisa conseguiria aleatoriamente reunir brasileiros (3.810 deles) sob as condições expostas: 56% no sul e no sudeste, 29% não residentes em áreas metropolitanas, 71% com 30 anos ou mais, 66% mulheres, 38% brancos, 90% católicos ou evangélicos, 95% sem ensino superior, com renda domiciliar per capita média de R$530.

Como levar a sério uma pesquisa cuja amostra, após análise de apenas dois itens (sexo e religiosidade) já apresenta um desvio acima de 35%? A probabilidade de errar tanto em uma amostragem aleatória de quase 4 mil pessoas é tão grande quanto a de você encontrar um duende debaixo da cama. “Achar” que não faria diferença não muda os fatos.

E há ainda a absurda manipulação nas questões da pesquisa e muita ingenuidade (ou má intenção mesmo!) na interpretação feita pela mídia. Afinal, qual seria o atrativo comercial de uma notícia sob o título “brasileiro não tolera estupradores”?

O Fantástico, dezenas de outros veículos de comunicação e o Ipea devem desculpas àqueles que desaprovam veementemente a ação de estupradores. Somos, queiram ou não provar algo contrário, a maioria dos brasileiros.

Protestar na Paulista é fácil

Existe machismo? Sim! Existe de tudo um pouco, do bom e do ruim. Mas os fins nunca deveriam justificar os meios! Não se pode esquecer que a maioria absoluta dos abusos ocorre por familiares ou conhecidos e a maior parte das vítimas é ainda criança. Esse e outros cenários que os autonomeados “socialistas” detestam e fingem ignorar, porque é mais “revolucionário” defender causas com grife, não podem ser contestados.

Manifestantes acreditam que seu protesto, com plaquinhas de “eu não mereço ser estuprada” a cobrir os peitos, consegue atenção de familiares para a que protejam as crianças disso? Ou estariam tentando conscientizar os estupradores? Quaisquer dessas ações deve fazer muito sentido em algum outro planeta.

Se o alvo era esse, erraram tanto quanto o Ipea. Miram no alvo errado e, enquanto isso, as verdadeiras vítimas mantêm-se desamparadas. Talvez por ingenuidade dos envolvidos, talvez porque não votem. Ativistas ignoram, por fanatismo ou comodidade, que campanhas de conscientização devem ser diretas e dizer tudo aquilo que pretendem. Clara e simplesmente, para atender um público pouco instruído. Mensagens politizadas e fotos bonitinhas para “bombar” no Instagram ou Facebook trazem uns minutinhos de fama, não resultados.

Até já usaram a pesquisa para fortalecer “a causa” e distribuir alfinetes às usuárias do metrô. Fosse a loira jornalista do SBTa propor tal “defesa”, deputadas já estariam a gritar. É preciso desapegar um pouco. Lhes é demasiada e irritantemente importante ter razão. Assim como ao Ipea, lhes falta humildade para o “erramos”. Falta quilometragem a vossos protestos. Protestar na Paulista é fácil. Até na Augusta é! Deveriam ir às ruas onde não há asfalto, esgoto, polícia. Onde as crianças não conhecem os pais. No mundo longe de teu conforto, a realidade é outra!

Eis um exemplo do tipo de justiça feita quando se age com histeria, a partir do que alguém “acha” ou “percebeu ao redor”: https://www.youtube.com/watch?v=VgxOWHTHVug

Distribuam suas alfinetadas. Felizes e frias. Aos demais, procurem saber sobre a adolescente que participou de uma orgia e foi procurada por feministas que tentaram convencê-la de que fora abusada.

Verificar as fontes

O Ipea precisa explicar porque a pesquisa ficou engavetada por quase um ano. Pesquisa publicada e estrago feito, surgiram os aproveitadores. Encontrei alguns deles na televisão. Outros, em colunas de revistas e jornais. Inclusive alguns que vivem a acusar a “grande mídia” de manipulação. No caso mais explícito, quando a conclusão da pesquisa lhe agradou, um colunista citou trechos comprobatórios de seus ideais: “A intolerância também é maior entre religiosos. A maioria dos católicos, por exemplo, diz não aceitar a ideia de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Já os evangélicos são mais intolerantes em relação à homossexualidade.”

Porém, em outro artigo, ao citar que entrevistados julgaram o comportamento das mulheres como uma das causas para estupros, o mesmo colunista omitiu informações essenciais à análise – por exemplo, a maioria que opinou era composta por mulheres e negros, e apenas 5% possui curso superior. Como não encontrou número suficiente de representantes da “classe opressora” para criticar, omitiu-se. Ironicamente, sugeri ao autor que pedisse correção ao Ipea. Obviamente, para seu público, me tornei machista-homofóbico instantaneamente.

Deixou a nítida impressão que, fossem os entrevistados 65% homens brancos e diplomados, os títulos incluiriam algo denotando que mulheres pobres e negras são mais oprimidas. Isso é um “acho”. Depois, ao regurgitar que “Se não sabemos nos comportar diante de uma mulher de saia, melhor banir a saia”, fingiu desconhecer que 66,5% dos entrevistados da ridícula e claramente distorcida (manipulada?) pesquisa eram mulheres. Estaria afirmando que estas não sabem comportar-se diante da saia alheia? Não fazia o menor sentido e, novamente, me soa como má intenção. Mas, é outro “acho”. Não vale nada! Ao contrário do ilustre colunista, não ostento anúncios da Caixa ou da Petrobras em minhas páginas e não creio (mesmo!) que as coisas estejam tão ruins. Há seres perversos e sem-noção por todos os cantos, mas não aceitemos tão facilmente que estes sejam maioria. Nem sequer grande parte.

Acredito mais em uma grande parcela de analfabetos funcionais (e uns muitos idiotas que realmente entenderam e são escrotos, claro!) sendo entrevistados por quem pretendia formar opinião. As questões foram propostas de maneira absurda. Há contrapontos demais e me coloquei contra isso desde a divulgação. Por estar engavetada há quase um ano, creio que dentro do Ipea também havia dúvidas. Mas a nota publicada para correção não abordou tal ponto. Acho errado. Tentemos evitar motivos estritamente políticos, embora possíveis. Por via das dúvidas, reservemos sempre algum tempo para verificar as fontes e formular conclusões que não nos tenham sido entregues por algum veículo irrigado por verba estatal. Acho importante.

E você, não acha? Sua opinião deve sempre ser a mais importante para você. Leia, informe-se, esteja atento aos argumentos, mas jamais deixe pesquisas ou um ser qualquer lhe fornecer conclusões!

Foi muita pretensão

Somos uns porcos, senhora? Até há pouco, o governo – que eu não aprovo, pois não me apaixono por PT, PMDB, PSDB e outros – vangloriava-se em suas propagandas que “o melhor do Brasil é o brasileiro” e que “a Copa do mundo será um sucesso devido ao brasileiro”. Agora, a presidente nos “cornetou” ao Twitter: “Precisamos avançar muito no combate a essa violência.” Isso muda conforme qual necessidade?

Se acredita que a pesquisa realmente reflete o pensamento de grande parte dos brasileiros, meus pêsames: você acredita estar num mundo muito pior do que ele realmente é! Por hora, é preciso governar e esquecer os tuítes e as eleições. Já em campanha, qualquer tema se torna um duelo entre oposição e governo a mendigar uns míseros votos, irresponsavelmente reduzindo à tema de campanha os dados que deveriam ser usados para definir políticas públicas e rumos de uma sociedade. Sugiro promovermos uma pesquisa sobre reeleição. Você, não, Ipea… Estás de castigo!

Na internet, qualquer “porém” foi interpretado como algo a favor de estuprador. A manchete poderia ser “Pesquisa comprova que o brasileiro é implacável ao ser contrariado”. Ao expor falhas na amostra da pesquisa, fui tachado de “ignorante preconceituoso” e comparado à membro da Ku Klux Kan (sic) – a educação precária não é privilégio dos entrevistados.

Alguns concordaram com inconsistências apresentadas, mas justificaram achar que “se corrigidos, os números seriam muito parecidos”. Houve até feminista que defendesse a manipulação “pela causa”. Questionada sobre quem julgaria quais causas seriam válidas para manipulação, desconversou. Lembrei-a que a idéia de que alguns fins justificam os meios já serviu para implantação de uma ditadura por aqui. E afirmo: nada justifica propagar uma mentira ao povo! Fazê-lo por simpatia a uma causa é tomar pra si o direito de escolher em que as pessoas devem acreditar. Ninguém deveria fazê-lo! Também fui rotulado “teórico de botequim”. E isso só me fez lembrar que boteco é lugar onde se pode aprender mais sobre a vida que em frente ao MacBook usado pelo revolucionário que fez tal crítica.

É claro que temos problemas gravíssimos. Mas a margem é absurda! 65% concordar com uma imbecilidade dessas é artificial demais. Após a correção, lhes digo: 26% também é. O número continua errado!

No documento original, há outras informações relevantes que foram totalmente ignoradas ao efetuar as conclusões emitidas pelo instituto e pela imprensa. Por exemplo, na página 24 evidencia-se que “residentes do Sul/Sudeste e jovens têm menores chances de concordar com a culpabilização do comportamento feminino pela violência sexual, que também são menores inversamente ao nível educacional dos entrevistados”. Há proporcionalmente mais pessoas nessas condições entre nós do que na pesquisa.

Uma senhora analfabeta do interior faria associação entre “merece ser atacada” e “merece ser estuprada”? Se a senhora quisesse xingar a mulher, não seria uma forma de ataque? O nível de educação dela permitiria vincular esse “ataque” a um estupro? Por que omitir a palavra estupro quando o nível de educação dos entrevistados é tão baixo? E, novamente, por que ficaram com essa pesquisa engavetada por quase um ano?

Ignorando todos os argumentos, grande parte das pessoas preferiu vestir a fantasia de “ser superior” e “sou tão melhor que a maioria dos brasileiros” que lhes foi entregue. Faltou pensar: “Não conheço tantas pessoas que pensam assim! Onde elas estão? Meu núcleo de conhecidos é assim melhor que os demais?” Lamento pelos que acreditaram nisso, mas você não é tão melhor que os demais. E não somos um país de porcos como fizeram parecer.

Resumindo, a repercussão da pesquisa do Ipea: foi muita pretensão!

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Everton Jesus é analista de sistemas, Campinas, SP