Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O médico dono de funerária

Pode um jornalista exercer a reportagem numa empresa privada e ao mesmo tempo ser assessor de comunicação de um órgão público? Legalmente, pode. Eticamente, não, pois o bom exercício do jornalismo exige independência. Trata-se de evidente conflito de interesses. Alguém consegue imaginar um repórter do Jornal Nacional atuando também como assessor da Câmara dos Deputados?

Proporções devidamente arquivadas, é o que ocorre em Itabira, onde o jornalista Roberto Meokarem acumula os cargos de repórter e editor do Grande Jornal, da rádio Itabira AM, e o de assessor de comunicação da Câmara de Vereadores de Itabira, nomeado pelo vereador-presidente Rodrigo Assis Diguerê, com salário mensal de R$ 3.840, 24.

Essa dupla função causa situações surreais. Frequentemente, Rodrigo Diguerê é noticiado no Grande Jornal, entrevistado por Roberto Meokarem. O ouvinte atento fica sem saber quem o está entrevistando – se o Roberto repórter e editor da emissora ou o Roberto assessor do próprio Rodrigo Diguerê. Nesse caso, não há defesa, é antiético, é incompatível, é esquisito, é limitador. Fica mal tanto para o jornalista quanto para a Câmara.

Tanto é limitador que Roberto Meokarem nunca deu um pio crítico, na rádio, sobre atitudes danosas para Itabira tomadas recentemente pelo presidente da Câmara, Rodrigo Diguerê. Ele criou 22 cargos comissionados e aumentou a verba de gabinete dos vereadores em escandalosos 150%. Nada se ouve na rádio Itabira acerca desse assunto.

Como o repórter-editor-assessor Roberto Meokarem, numa entrevista com o presidente Rodrigo Diguerê, poderá tocar nesses assuntos, de grande interesse jornalístico, se o emprego do primeiro, na Câmara, depende diretamente do segundo, como presidente do Poder Legislativo? Funcionário entrevistando patrão: se não houvesse dinheiro público envolvido, seria até divertido.

Mesmo não havendo argumento capaz de abonar essa dupla atividade, O TREM procurou Roberto Meokarem para, democraticamente, publicar a versão dele.

O senhor não considera incompatível ser repórter-editor da rádio Itabira e ao mesmo tempo assessor de comunicação da Câmara de Vereadores local?

Roberto Meokarem – Os seus questionamentos sobre a minha ocupação de editor do Grande Jornal da rádio Itabira e também de assessor de comunicação da Câmara são até pertinentes, mas justificáveis do ponto de vista da ética. As atividades não são incompatíveis na medida em que a ética é sempre priorizada, mesmo quando você pressupõe que estou defendendo interesses distintos. Na profissão, no dia a dia, estamos lidando sempre com informações e fatos que requerem apuração. E isso é primordial para o bom jornalismo. A partir daí, acho que cumpro meu papel como repórter-editor, levando fatos e informações devidamente apuradas e isentas de influência do cargo que ocupo. Estou há 11 anos à frente do Grande Jornal e não há nenhuma repercussão negativa do trabalho da equipe e, em especial, do meu trabalho como editor. Na Câmara, ocupo o cargo de assessor de comunicação da instituição e não do presidente. Também considero o trabalho desenvolvido satisfatório do ponto de vista da informação isenta e da ética. Nunca defendi esse ou aquele vereador e nem omiti informações pertinentes ao trabalho do Legislativo. Pelo contrário, sempre fui a favor da divulgação maciça das informações para a comunidade. E, não há, como você sugere, chance de esconder notícia, já que vários órgãos de imprensa cobrem o cotidiano da Câmara.

Quando o senhor entrevista o presidente da Câmara, Rodrigo Diguerê, quem o está entrevistando: o Roberto assessor do próprio Rodrigo Diguerê ou o Roberto repórter-editor da rádio Itabira?

R.M. – Em toda entrevista, procuro situar o ouvinte, leitor, cidadão sobre o que está ocorrendo e o que a informação pode repercutir na vida da comunidade. Por isso, não há distinção na figura do repórter ou do assessor de comunicação quando estou com o gravador ligado. Pauto meu trabalho baseado na ética e assim tem sido ao longo dos meus dezessete anos de profissão.

Não acha que está sujando a sua biografia ao ocupar os incompatíveis cargos de repórter-editor e ao mesmo tempo de assessor de comunicação da Câmara?

R.M. – As atividades não vão manchar em nada a minha vida e a minha reputação profissional.

Há outros na Câmara

Os comunicadores Juber Madeira, apresentador do programa político Sem Meias Palavras, na rádio Antártida, e Flávio dos Santos, editor do jornal Impacto, também atuam na Câmara itabirana sem abdicarem de suas funções jornalísticas. O primeiro é assessor do vereador Paulo Soares; o segundo, do vereador José Mauro de Oliveira.

Servir a Deus e ao diabo

O TREM ouviu quatro dos melhores jornalistas brasileiros sobre o caso do repórter-editor-assessor Roberto Meokarem. A Alberto Dines, Juca Kfouri, Luiz Egypto e Audálio Dantas o jornal fez esta pergunta: pode um jornalista exercer a reportagem numa empresa privada e ao mesmo tempo ser assessor de comunicação de um órgão público?

De Juca Kfouri: “Obviamente, não pode. Isso já não é mais conflito de interesses. É uma guerra de más intenções”.

De Alberto Dines: “Claro que não pode. Trata-se de um evidente conflito de interesses. É uma infração deontológica e ética. Assim como não se pode confiar num médico que seja dono de uma funerária, um repórter-assessor, além de esquizofrênico, é rigorosamente inconfiável. As duas profissões não são complementares, são antagônicas, apesar de assemelhadas. E esse é o perigo”.

De Luiz Egypto: “Não deve. É bom não misturar as coisas. Mas, se for misturar, como nesse caso de Itabira, conviria então que a cada emissão de notícias sobre os vereadores a emissora deixasse claro à sua audiência que a edição daquele conteúdo foi de responsabilidade do jornalista que também é assessor de comunicação da Câmara”.

De Audálio Dantas: “Do ponto de vista ético, o carro pega, se ele utiliza o veículo jornalístico, no caso o programa de rádio que edita, privilegiando informações referentes à empresa ou ao órgão público do qual seja assessor. Moralmente, o profissional de ‘dupla militância’, como é o caso de Itabira, está impedido, por exemplo, de veicular matérias elogiosas a integrantes do órgão público a que serve. De outro lado, muito mais grave seria omitir informação sobre falcatruas praticadas por quem assessora. Não é recomendável servir a Deus e ao diabo ao mesmo tempo”.

Aumenta o descrédito

O jornalismo itabirano, com raras exceções, padece da falta de credibilidade. Essa situação criada pelo jornalista Roberto Meokarem e pela Câmara de Vereadores de Itabira contribui para piorar o quadro.

******

Eric San-Mártin Rosenthal é jornalista