Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Ou sociedade acompanha internet ou democracia fica em xeque’

O mundo virtual já é uma realidade enquanto a privacidade está se tornando ficção. Não há mais divisão entre trabalho e vida particular, e seus dados pessoais são vendidos indiscriminadamente. Como ficam as regras do jogo?

“O limite entre privado e público hoje é um limite móvel”, diz Ronaldo Lemos, um dos principais responsáveis pelo Marco Civil da Internet.

Ele alerta para os riscos que a cultura da internet traz para a democracia, mas se revela otimista diante das perspectivas. Nesta entrevista, defende as leis reguladoras como a grande saída diante deste panóptico de vigilância perfeita que pode se tornar o mundo cibernético.

Ronaldo Lemos é advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, e professor de Direito da Uerj. Mestre em direito pela Universidade de Harvard, doutor em direito pela Universidade de São Paulo e representante do MIT Media Lab no Brasil. É também diretor do projeto Creative Commons no Brasil e membro do Conselho de Administração da Fundação Mozilla. Escreve semanalmente para a Folha e apresenta o programa Navegador na Globonews, focado em inovação.

Existe privacidade na vida contemporânea?

Ronaldo Lemos – Não. O limite entre privado e público hoje é um limite móvel. Surge uma nova ideia de privacidade: os círculos de controles. Você tem um custodiante, uma empresa tipo Google ou Facebook, com quem estabelece uma relação de confiança, e a empresa vai ser a guardiã daquelas informações. Qual a responsabilidade deste custodiante? Essas são as regras que a lei pode incentivar.

Hoje quando você acessa um site, muitas vezes acaba acessando 30 outros que estão coletando seus dados sem seu consentimento. São sorvedouros de dados pessoais.

Qual o limite ético para a arrecadação das empresas com os dados pessoais?

R.L. – Os dados pessoais são o petróleo da internet. Grande parte dos serviços gratuitos são pagos com a venda de dados pessoais. É disso que vivem empresas como Google, Facebook, Twitter e muitas outras. E também empresas educacionais como a EDX de Havard, que oferecem cursos incríveis – todas usam como esquema de negócios a venda de dados pessoais.

A meu ver isso tem que ser conduzido por uma decisão que atravesse os canais democráticos. O problema é sistêmico. A tecnologia desafia a democracia a se aperfeiçoar. A sociedade se tornou infinitamente mais complexa. Ou a sociedade acompanha ou a própria democracia começa a ficar em xeque. Eu sou otimista, acho que a longo prazo a democracia vai se expandir com a tecnologia. Como por exemplo com as novas formas de consulta pública. Hoje mais do que nunca é possível compartilhar a tomada de decisões públicas entre grupos de pessoas, entre a sociedade civil.

As relações de trabalho também mudaram.

R.L. – Essas mudanças não vieram para liberar tempo de ninguém , inclusive acaba a diferença entre espaço de trabalho e espaço privado. Você não para de gerar valor em nenhum momento. Isso é uma característica da nossa sociedade hoje. Primeiro precisamos pensar no impacto disso em nós, indivíduos, se a gente quer isso mesmo, por que só vai se aprofundar. Outro desafio é que a gente vai ter que responder coletivamente, a sua decisão individual é irrelevante.

Como ficam os direitos trabalhistas nesse contexto?

R.L. – O direito do trabalho vai ficando desafiado assim como a democracia. Hoje não tem um paradigma que alcance este tipo de questão, é difícil dizer até pra quem você trabalha. Quando você está numa rede social, produz um valor que está sendo apropriado por alguém. Os paradigmas do direito do trabalho não dão conta da complexidade. Como reconstruir e repensar isso? A lógica do trabalho e da vida foi uma das grandes conquistas dos direitos trabalhistas. Mas hoje você produz 12, 18 horas por dia, ou até dormindo.

O diagnóstico é que leis trabalhistas estão se distanciando cada vez mais do que se tornou o paradigma do trabalho como aplicação de esforço humano para geração de valor, por que este valor é produzido de formas muito mais complexas e abstratas do que as leis dão conta.

O que faltou no Marco Civil, em sua opinião?

R.L. – Primeiro é importante ressaltar que o Marco Civil foi construído de forma inédita num processo colaborativo. O texto final aprovado pela Câmara é muito fiel ao texto final originário da consulta pública. Nisso o Brasil ocupa um lugar singular e inovador. Nesse sentido os Estados Unidos estão desmoralizados com os casos da espionagem. O Brasil é hoje exemplo da grande democracia no mundo com a missão de proteger direitos na internet, estabelecer as regras do jogo.

Agora, para além do Marco Civil, a agenda imediata é a lei de Proteção dos Dados Pessoais. Nessa o Brasil está atrasado 40 anos. O Marco Civil trata da questão da privacidade com alguns artigos mas não trata deste tema exaustivamente e nem da questão dos dados pessoais em si. O Marco Civil é um avanço mas nem começa a esgotar esse tema.

Por exemplo?

R.L. – Por exemplo a questão de dados sensíveis, coisas como religião, orientação sexual, o histórico médico, dados muito sensíveis que merecem uma regulação específica e não há nada que trate disso.

Inclusive o Brasil já tem uma redação para este tipo de lei, extensa e longa que foi preparada pelo Ministério da Justiça. O problema é que ela está parada no Executivo. Argentina, Chile, Colômbia, todos têm. Os países europeus têm leis muito estritas quanto a dados pessoais.

Qual o grande desafio?

R.L. – O desafio que a tecnologia traz é para as instituições que foram construídas nos últimos quatro séculos. Princípios que foram construídos não podem ser jogados pelo ralo. Ter leis com causas pétreas que não podem ser modificadas é fundamental. Regras claras e fortes o suficientes para sobreviverem a qualquer tipo de governo. Não dá pra negociar, transigir com liberdade de expressão e privacidade.

O ciberespaço pode ser considerado um terreno a ser explorado como um dia a terra foi? Corremos o risco de surgirem os “latifundiários” e as “oligarquias” nesse mundo virtual?

R.L. – Hoje existe o fenômeno das superempresas da internet, e esse fenômeno merece atenção. Empresas como Facebook, Yahoo, Twitter, Google, e outras. Hoje, algumas delas têm populações comparáveis a países. O Facebook tem um bilhão de usuários, por exemplo. As regras são decididas pelo próprio Facebook, e aplicadas para um bilhão de pessoas.

Que tipo de regulação deve ser dado a essa potência? Isso é um desafio para a lei e um desafio pro Estado. Muitos acham que devemos combater fogo com fogo. Como se cada um precisasse saber tudo de tecnologia de anonimização para se proteger. Mas eu acho que assim não vai funcionar.

A minha visão nesse sentido é a lei. Por isso o Marco Civil é tão importante, nesse mundo em que a rede pode caminhar para virar uma ferramenta de vigilância perfeita.

Hoje você sabe passo a passo o que é feito pelas pessoas ao longo de suas vidas. O que vai permitir que isso seja uma coisa incrível e positiva é a lei, a única ferramenta para marcar a divisão das águas. Leis que reforcem princípios construídos e que defendam liberdade de expressão, privacidade, liberdades civis , individuais, sistema de freios e contrapesos.

Como está o Brasil em termos de empreendedorismo virtual?

R.L. – Temos várias empresas de capital de risco, tipo a Samba Tech, que começam a decolar. Tem a boo-box, o Buscapé.

O que tem, e aumenta a minha dose de otimismo, é toda uma geração de jovens brasileiros inspirados por Mark Zuckerberg, que querem a todo custo empreender. Isso é uma das melhores coisas que acontece no Brasil hoje. Mas na hora que alguém resolve abrir a empresa esbarra em burocracias do século 19, enquanto está com ideias do século 21. Descobre que vai levar 120 dias para abrir a empresa além de uma série de dificuldades.

É um cenário inóspito para a inovação. E se abrir foi difícil, fechar é um horror, e isso é péssimo por que as empresas têm que poder falhar, e poder falhar rápido. E se falhar, não podem ser punidas por isso. Tem que ter um ciclo muito rápido. No Chile você abre uma empresa em um dia na internet e fecha com igual facilidade. No Brasil isso não acontece. Como se muda esse ecossistema?

A democracia da rede encontra uma veia aberta para o liberalismo econômico?

R.L. – A boa vontade com o Vale do Silício está acabando. A revista Wired no mês passado fez uma crítica quanto à arrogância destas empresas. É um modelo com defeitos. No Brasil a gente nem chegou ao estágio dessa crítica. Por aqui ainda é desejável que a gente tenha um ciclo baseado em capital de risco, com jovens empreendedores em inovação descentralizada, que é o que gerou o Vale do Silício. Aqui a gente vive todos os processos ao mesmo tempo, a gente vive a falta de saneamento básico junto com a falta de capital de risco.

Como visualiza o futuro da mídia impressa? As redes sociais vão roubar esse espaço?

R.L. – Existe uma crise que faz parte de um processo de transformação. O modelo de negócio pode evoluir. Agora é um momento de experimentação, é preciso inventar uma nova forma. No caso das mídias alternativas, como a rede social, quem controla e edita as informações são algoritmos, expressões matemáticas que ao analisarem o meu perfil criam uma regra do que eu vou ver. Ora, um editorial que é feito por um algoritmo também não é bom.

Achar que aquilo vai traduzir a diversidade da esfera pública é um erro. Confundir feed do Facebook com opinião pública é um erro crasso. No fim eu acho que é bom ter tudo, vários filtros de informação ricos. É bom ter TV, rede social, jornal, algoritmo, priorizar o equilíbrio de forças entre produzir, disseminar e filtrar.

E os bitcoins?

R.L. – Isso me parece algo ultra liberal. Com eles você tem muito mais facilidade e liberdade para migrar dinheiro de um país para o outro. Por outro lado, facilita a lavagem de dinheiro. A internet proporciona coisas interessantes e outras preocupantes. Ela mudou tudo, mas não como se esperava. Então tem muito entusiasmo, mas tem muita frustação. As moedas virtuais hoje são uma grande novidade, mas a tendência é que sejam assimiladas pelo próprio sistema bancário.

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Tracy Segal, para o blog do jornalista Morris Kachani