Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Admiração por Fidel origina fama imprecisa de esquerdista

A amizade e, mais que ela, a admiração nunca escondida por Fidel Castro fará com que a biografia de García Márquez, não como escritor ou jornalista, mas como o animal político que era, fique marcada pelo rótulo de esquerdista, admirador do marxismo, o que só é parcialmente verdade.

Os elogios que Gabo dirigiu a Fidel são de deslumbramento absoluto. “Um homem de costumes austeros, mas de ilusões insaciáveis” é apenas um exemplo. Outro: “Tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação da consciência e de que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a história”.

Ou, mais ainda: Fidel Castro “é a inspiração, o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só nega os que não tiveram a glória de tê-lo visto”.

Castro devolvia a admiração, a ponto de ter dito, certa vez, que, numa próxima encarnação, gostaria de voltar como escritor –”e um escritor como Gabriel García Márquez”.

Estabelecida a incontida admiração pelo líder cubano, cabe, entretanto, uma observação puramente pessoal, fruto de conversas com o escritor quando recebi, em 2004, o prêmio pelo conjunto da obra conferido pela Fundação que Gabo presidia, a Fundação por um Novo Jornalismo Ibero-americano.

Desse papo solto, sem compromisso, restou a nítida sensação de que o escritor admirava em Fidel não tanto o líder comunista, mas um homem capaz de fazer história, qualidade que ninguém pode negar ao hoje aposentado governante.

Capaz de fazer história exatamente no ambiente, o realismo mágico, que permeou praticamente todas as histórias que García Márquez escreveu.

Ou não é realismo mágico implantar um regime comunista no Caribe, a apenas 90 milhas das costas norte-americanas, o grande inimigo?

Cantos opostos

Uma demonstração de que García Márquez se dava bem com outros mandatários não-marxistas é o fato de que colaborou com diferentes presidentes colombianos, conservadores ou liberais, nos diferentes processos de paz tentados no seu país de origem.

Ele próprio se definia como “um conspirador pela paz”. Desse seu empenho escreveu Alejo Vargas, cientista político da Universidade Nacional da Colômbia: “Quiçá uma contribuição importante de Gabo tenha sido ajudar a criar um ambiente internacional favorável a apoiar os esforços de paz de diferentes governos”.

Outro exemplo de seu envolvimento com os que fazem história, de que também fui testemunha ocular: na posse de Carlos Andrés Pérez na Venezuela, em 1992, Gabo era um dos convidados de honra, ao qual foi reservada a primeira pergunta, na entrevista coletiva que se sucedeu à posse.

Detalhe: no mesmo 1992, um certo Hugo Chávez tentou um golpe contra Carlos Andrés, o que demonstra que Gabo podia, sim, ser também amigo de inimigos da esquerda.

Mas, no conjunto da obra, é indisputável que seu coração estava à esquerda. Em 1975, instalou-se por duas semanas em Lisboa, para acompanhar a chamada “Revolução dos Cravos”, deflagrada no ano anterior, e de inclinação inicial nitidamente esquerdista (depois houve correção de rota).

Desse período, é uma reportagem para a revista (de esquerda) “Alternativa” com o deslumbrado título de “Portugal, território livre da Europa”.

A acentuar sua inclinação, há o célebre rompimento com Mário Vargas Llosa, o peruano também Nobel de Literatura. Vargas Llosa tornou-se um liberal impecável, o que permitiu colocá-los em cantos opostos, um à esquerda, como amigo de ditadores comunistas, como diz a direita, e, o outro, como um neoliberal, palavra que, no léxico da esquerda, é palavrão.

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Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo