Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Imagem de criança provoca debate sobre ética jornalística

O jornal britânico Daily Mirror publicou, em sua capa de 16/4, a imagem de uma menina chorando que ilustrava uma reportagem com dados sobre a pobreza e a fome na Grã-Bretanha. O que parecia ser apenas a publicação de uma imagem inofensiva – ainda que forte e marcante – provocou polêmica.

Qual seria a fonte da encrenca? A foto foi feita em 2009. A menina em questão não é britânica e não chora porque é pobre ou está faminta. Na verdade, a garotinha é americana, filha da fotógrafa Lauren Rosenbaum, e a expressão chorosa se deu por causa de uma minhoca no jardim, que fugiu da tentativa de “amizade” por parte da menininha. Laura compartilhou a imagem em seu perfil no Flickr e depois vendeu o material para a agência Getty Images.

A revelação sobre a origem da fotografia foi apontada por Dan Barker, especialista em marketing digital, em um post intitulado “O choro da criança na foto do The Mirror… nem tudo é o que parece”; ele suscitou algumas questões:

Será que o fato de a imagem não ser de uma criança faminta importa? Será que faz diferença a foto não ter sido tirada no Reino Unido? Existe alguma questão ética envolvida na compra de uma fotografia de uma criança aleatória e em seu uso para ilustrar a pobreza? Faz diferença a matéria citar a “a Grã-Bretanha de 2014” utilizando uma foto dos “EUA de 2009”?

Barker, no entanto, não ofereceu resposta a nenhuma das perguntas que levantou. Apenas concluiu: “Não estou certo em relação às respostas para qualquer uma das perguntas acima”; em seguida pediu a seus leitores que pensassem no assunto. O público que comentou no post pareceu dividido em suas opiniões.

Uma internauta, que se identificou como Jude, disse: “Não vejo problema com esta imagem. Acho que nesse caso é bem melhor utilizar uma foto de agência do que a fotografia de uma criança britânica identificável. A emoção na imagem provavelmente não seria a mesma se o rosto estivesse obscurecido por pixels”.

Já outro, que se identificou como Twm Owen, alegou que “oMirror devia ter acrescentado uma nota de rodapé, mesmo que em ‘letras miúdas’, deixando claro que a imagem é uma foto de agência. Assim como os leitores têm o direito de pensar que a imagem está diretamente relacionada à reportagem, eles também têm o direito de se sentir ‘enganados’ pelo apelo visual”.

O tom dramático e a estatística

Profissionais do meio jornalístico também se manifestaram sobre o assunto. Liz Gerard, subeditora do Sunday Times, afirmou: “Se analisarmos bem, ilustrar a reportagem com a imagem de uma criança chorando já é estar fadado ao fracasso, independentemente do ângulo escolhido pelo Mirror. Deviam ter pensado no assunto com mais cuidado.”

Já Andrew Brown, que escreve artigos ligados a assuntos religiosos para o Guardian, foi menos rígido ao redigir um texto sobre a questão: “A metáfora não é um enfeite que colocamos sobre os fatos. É a única coisa que torna a linguagem possível e, assim, de certo modo, é a única coisa que torna os ‘fatos’ possíveis”, declarou. “Creio que, para fins de publicidade, o Mirror deveria ter usado a imagem de uma criança que fazia parte da história publicada; no entanto, isso dificultaria a aceitação do leitor, que se recusa a acreditar nos dados da reportagem apresentada ali. Uma criança chorando é uma tragédia, mas 330 mil são apenas estatística”.

Brown diz que, na verdade, todo o estardalhaço em torno da capa do Mirror deixa uma terrível lição: “Pertencemos a uma espécie que se comove mais facilmente pelas lágrimas de uma criança devido à fuga de uma minhoca de estimação do que por crianças desconhecidas passando fome em locais que buscamos não enxergar”.

O próprio Mirror, no entanto, minimizou a situação. “É um retrato de uma criança chorando disponibilizado no banco de imagens da Getty, o qual usamos para fins ilustrativos. Imaginem que coisa horrível se tivéssemos usado uma foto de uma criança real que tivesse recebido cestas básicas”, justificou o editor Lloyd Embley.