Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O legado complexo de um gênio

A reputação literária do colombiano Gabriel García Márquez, que morreu hoje na Cidade do México, aos 87 anos, está estabelecida faz tempo. Sua cotação na Bolsa de Valores Literários deverá sofrer oscilações no futuro, como a de qualquer escritor que não seja simplesmente esquecido, mas poucas vozes devem se dar ao trabalho de lamentar, por exemplo, seu “folclorismo e exotismo realmente desnecessários” como fez o exilado cubano Guillermo Cabrera Infante, um desafeto político morto em 2005. “Cem anos de solidão” é um monumento cravado na história da literatura, ponto. Como seus três ou quatro principais livros depois dele mantêm o sarrafo lá no alto, o solo sob os pés do escritor parece firme. No caso de Gabo, como o chamavam os amigos próximos (e os jornalistas de qualquer distância), a reputação que falta fixar é a do homem público, a do “político” – papel que o ex-menino pobre e franzino de Aracataca passou a representar de modo praticamente profissional depois de se consolidar como celebridade planetária com o Nobel de literatura de 1982.

Foi essa frente política – ou seriam fundos? – que a crítica internacional atacou com maior apetite na notável biografia autorizada que o inglês Gerald Martin publicou em 2009, após 17 anos de trabalho, lançada no ano seguinte no Brasil: “Gabriel García Márquez: uma vida” (Ediouro, tradução de Cordélia Magalhães). Não adianta dizer que o homem político interessa pouco, que só se deve julgar um escritor por sua obra: García Márquez se impôs no papel não só por sua estética “terceiro-mundista”, influenciadora de gerações de escritores ditos pós-coloniais, mas sobretudo por uma atuação pública de esquerda que sobreviveu à própria ideia de esquerda. Como separar vida e obra de quem prometeu em 1975, após lançar “O outono do patriarca”, que não voltaria a escrever romances enquanto o ditador chileno Augusto Pinochet estivesse no poder – promessa felizmente descumprida?

O calcanhar-de-aquiles mirado preferencialmente pelos críticos tem barba rala e um gosto por uniformes de campanha. Admirador de primeira hora de Fidel Castro e seu amigo desde meados dos anos 1970, o escritor ilustre veio a se tornar também seu maior avalista internacional – disparado – à medida que os novos ares políticos do mundo foram convertendo o ex-líder revolucionário romântico num dinossauro político. Essa amizade custou caro ao conceito de Gabo em certos círculos. Sem esconder sua condição de fã, Gerald Martin atacou o tema de frente, mas mesmo assim levou cascudos da maioria dos críticos por se abster de julgar seu personagem. De fato, o biógrafo jamais se declara contrário a um apoio polêmico que não foi retirado nem quando, no episódio do fuzilamento de presos políticos cubanos em 1989 – entre eles um amigo de Gabo, o general Arnaldo Ochoa –, o mundo intelectual desabou em cima do escritor, Susan Sontag incluída. O ex-amigo e depois inimigo do peito Mario Vargas Llosa (mais sobre a briga aqui) lhe deu um cruel apelido, que pegou: “Lacaio de Fidel”. Natural: será sempre alto – e justo – o preço pago por um artista de peso ao endossar um regime ditatorial que passa sentenças de morte por crimes de opinião. Isso não quer dizer que não haja um tipo de coerência na posição de Gabo.

Casamento perfeito

A imagem de García Márquez como intelectual público que emerge de sua biografia é infinitamente mais complicada que a do escritor consagrado: muitas vezes indefensável e maculada por doses maciças de vaidade e fascínio pelo poder, mas ao mesmo tempo corajosa e com traços de ingenuidade – um escritor, talvez o último de sua linhagem, que sonhou influenciar os rumos da humanidade para além dos livros. Basta levar em conta um mínimo de contexto histórico e cultural para deixar evidente o ranço imperialista da resenha sobre o livro de Martin que o escritor Paul Berman publicou no jornal “The New York Times”: “Por que García Márquez escolheu travar tal amizade [com Fidel] é algo que eu não consigo explicar”. Quando tenta, Berman só consegue dizer que o escritor “sempre foi fascinado pelo grotesco, pelo patético e pelo improvável.” A explicação é outra, claro. Do ponto de vista do escritor colombiano, Fidel foi o maior nome da política latino-americana no século XX, líder de uma revolução que, na esteira do bloqueio americano, passou por dificuldades, endurecimentos e erros, mas nada que lhe tirasse o mérito original da autoafirmação de um continente marcado por séculos de servilismo. Isso é García Márquez puro.

Não se trata de defender sua posição, mas de compreendê-la. Quando narra o famoso caso em que o escritor atuou como guarda-costas de Fidel em visita à Colômbia, em 1994, seu biógrafo não foge da informação e ainda acrescenta ao quadro um detalhe fundamental: ao se prontificar a tomar um tiro no lugar do amigo, o que Gabo expunha, mais do que lealdade cega, era o orgulho de quem se considerava inatingível em sua posição de herói popular – ora, que colombiano arriscaria lhe fazer mal? Com exceção dos trechos em que enaltece os méritos literários do biografado, Martin é um narrador sóbrio, embora nunca menos que gentil com seu personagem. Sóbrio a ponto de, quem sabe a despeito de si mesmo, terminar por ser imparcial. Quando García Márquez brincou que “todo escritor deve ter um biógrafo inglês”, talvez não captasse todo o alcance da frase.

Mais embaraçosa sob certos aspectos era sua amizade festiva com Omar Torrijos, ditador populista do Panamá, também detalhada no livro. Desse quebra-cabeça político desponta um García Márquez que, como sua prosa, é mais colorido e barroco do que reto, embora tenda a ser de uma lealdade quase mafiosa a seus amigos – veja-se o modo como se aferrou a Fidel em seus tempos mais difíceis, no momento em que a maré do mundo virava com a ascensão de João Paulo II, Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev. A defesa politicamente incorreta que fez de seu também amigo Bill Clinton no episódio Monica Lewinsky é mais uma confirmação desse estilo. Personalista e não programático, Gabo cultivou ainda as boas graças dos esquerdistas moderados François Miterrand e Felipe González – e apoiou até um candidato conservador à presidência da Colômbia, Andrés Pastrana. Em compensação, nunca gostou de Hugo Chávez, apesar de compartilharem o antiamericanismo. A vaidade transoceânica era um dos lados menos favoráveis do baixinho Gabo. Fica óbvio o prazer que ele sentia no papel de mediador universal: o escritor no labirinto de sua própria influência, sob o peso de uma fama achachapante, brincando de resolver os problemas do mundo.

Esta é a segunda metade da biografia, pós-sucesso e sobretudo pós-Nobel. A primeira, que se lê como um conto de fadas, destrincha a intrincada árvore genealógica que García Márquez se dedicou a espelhar e deformar em suas histórias e o segue passo a passo, quase dia a dia, por meio de uma apuração de rigor maníaco: os primeiros anos de menino praticamente abandonado por pai e mãe, a adolescência entre prostitutas, o horizonte curto de um rapaz pobre perdido na zona bananeira da Colômbia que de repente ganhou uma bolsa de estudos salvadora, virou jornalista e casou-se com seu amor de infância, a discreta Mercedes, com quem teve filhos, correu o mundo e passou por situações de extrema penúria. Até que, em 1967, como se fosse uma pedra filosofal levada a Macondo pelo cigano Melquíades, “Cem anos de solidão” transformou a abóbora em carruagem de ouro.

Uma boa ideia do que foi o impacto desse livro pode ser alcançada imaginando-se uma fusão absurda: a de um Charles Dickens moderno com Harry Potter para adultos, temperada por um Jorge Luis Borges que vendesse horrores. Algo que todo mundo era obrigado a ler, que entusiasmava tanto a telefonista do escritório quanto o pós-doutor de Harvard. Nenhum escritor de meio século para cá, talvez mais, chegou perto de operar a mágica desse casamento de alta cultura e cultura de massa com a eficiência e a genialidade de Gabriel García Márquez.

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Sérgio Rodrigues é jornalista; o texto acima é a atualização de um artigo que publicou na revista Bravo, em 2010