Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um passeio pela alma humana

Tudo começou em 2009, quando uma empresa de papel de correspondência encomendou um texto publicitário para sua linha de produtos. Para sorte da banda sensível da humanidade, a tarefa recaiu sobre o inglês Shaun Usher, jovem redator obcecado por cartas desde seus tempos de infância.

De tanto fuçar em museus, arquivos e bibliotecas para a pesquisa do texto encomendado, Usher decidiu criar um blog alimentado por seus achados. Batizou-o de Letters of Note e ali foi despejando o que encontrava de mais notável – fossem cartas, fax, telegramas ou cartões-postais, de qualquer época, temática ou autoria.

Em poucas semanas o blog conquistou adeptos. Estes, por sua vez, foram contaminados pelo prazer de enriquecer o acervo inicial e passaram a garimpar mais material.

Para espanto de Usher, o que era um blog virou site e o site adquiriu características de museu: um museu on-line de 900 cartas que atrai mais de 1,5 milhão de visitantes por semana. Um arquivo de fácil navegação atende os mais de 70 milhões de aficionados que já se enfronharam nesse tesouro.

Tudo o que contém o acervo é facilmente encontrável através dos seis critérios de pesquisa: por tipo de correspondência (carta, bilhete, telegrama, fax), por método de composição (manuscrito ou à máquina), por data, por remetente ou destinatário (quando se trata de pessoas famosas) ou por temática (“guerra”, “desculpas”, “amor”, “tristeza”, “pedido”, “política” etc.).

“Bonito e inteiro”

Tem mais. Essa compilação contínua teve um desdobramento adicional quase lírico: passou do papel ao pixel e do pixel de volta ao papel, sob forma de livro.

Letters of note – Correspondence deserving of a wider audience (em tradução livre, Cartas notáveis – Correspondência que merece uma audiência maior) foi lançado no fim de 2013 e entrou em listas dos dez melhores do ano tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra.

Ricamente ilustrado e contendo uma seleta de 125 cartas pinçadas com rigor, o volume oferece uma vibrante gama de sentimentos – fragmentos de humor, seriedade, tristeza, vivacidade e tudo o mais que nos torna humanos. Uma carta de Katherine Hepburn para Spencer Tracy, o grande amor de sua vida, 18 anos após a morte do ator, por exemplo, é desconcertante. Já a deliciosa nota manuscrita de Elizabeth II para Dwight Eisenhower faz sorrir por conter a receita de um insosso bolo inglês que a rainha ficara devendo ao presidente dos Estados Unidos em 1960.

Pelas 384 páginas desse primeiro volume (um segundo já está programado) desfilam escritos de Gandhi para Hitler, de Groucho Marx para Woody Allen, do FBI para Martin Luther King (chamando-o de “besta anormal” e “demônio” e aconselhando-o a cometer suicídio), entre outros.

Shaun Usher considera que cartas podem ser mais “puras” até do que um encontro face a face. “Ao receber um envelope pelo Correio você está de guarda baixa, no seu momento mais honesto, desarmado e despido ao receber o envelope. Você pode tecer inúmeras conjeturas em torno do papel escolhido pelo remetente, da letra, da assinatura. Em contrapartida, todos os textos de e-mail têm aparência semelhante. Não têm vida nem charme”, diz o colecionador.

Uma das cartas mais singelas da coletânea foi escrita por um casal escocês desconhecido e levou quatro anos para chegar às mãos certas. A ideia de escrevê-la nasceu na noite em que uma bomba derrubou o voo 103 da Pan Am que sobrevoava a Escócia, em 1988, matando as 270 pessoas a bordo. Na ocasião, destroços do avião e corpos de passageiros desabaram sobre o vilarejo de Lockerbie, próximo à fronteira com a Inglaterra. Uma dessas vítimas tombada dos céus apareceu caída na pequena propriedade do casal Hugh e Margaret Connell, criadores de ovelhas.

Era de um americano, Frank Ciulla, que planejara passar o Natal na Inglaterra onde o esperavam a mulher e os três filhos. Foi somente quatro anos após a tragédia que a família Ciulla se sentiu com forças para visitar o local onde o corpo cadente de Frank havia tocado a terra. Ali encontraram a seguinte carta manuscrita pelo casal Connell: “Aprenderemos a conhecer Frank através de vocês. O momento em que o seu querido nos chegou, vindo da noite, foi irreal, assombroso e desesperadamente triste. Frank tinha nome, mas não estava conectado a ninguém. Agora finalmente podemos associá-lo a uma amorosa família. Para nós ele nunca foi ‘uma das vítimas’. Nos habituamos a chamá-lo de ‘Nosso Garoto’ e quando seu nome foi divulgado ele passou a ser ‘Nosso Frank’. Gostaríamos que soubessem que a vinda dele para perto de nós nos comoveu intensamente. Jamais esqueceremos o que sentimos ao vê-lo ali, tão bonito e inteiro, desprovido de vida. Saibam que vocês serão eternamente muito bem-vindos aqui.”

Passeio recomendado

Outra correspondência impactante da coletânea, por tórrida, é a carta escrita em 1932 por Henry Miller para Anaïs Nin, após conhecê-la em sua residência de Louveciennes. Apesar de ambos serem casados, foram arrebatados por uma paixão incontida desde o primeiro encontro: “Não espere mais qualquer sensatez de minha parte. Parti com pedaços de você colados a mim: caminho e navego num oceano de sangue, do seu sangue andaluz, destilado e venenoso… Aqui estou, ainda ardendo de paixão. Não apenas uma paixão por carne, mas uma fome absoluta, devoradora, de você… Me sinto homicida, tenho impulsos suicidas. Para onde foi o tempo em que homens duelavam, matavam, morriam por uma luva, por um olhar?…

“Terá sido tudo tão perfeito apenas porque foi breve e roubado?…

“Estudo-a intensamente para descobrir possíveis falhas, pontos fracos, zonas de perigo. Não os acho. Isso significa que estou cego de amor, cego, cego. Quero essa cegueira para sempre!”

Neste feriadão de Páscoa recomenda-se um passeio pelo site de Usher ou a leitura de Letters of note como anteparo ao noticiário certamente mais indigesto que se anuncia para o resto do ano.

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Dorrit Harazim é jornalista