Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De Dostoievski ao ‘CQC’

No dia 17 de março de 2014, o CQC apresentou seu primeiro programa do ano, após as devidas férias no final de 2013. Como em todo episódio, o programa foca bastante em mostrar problemas e, em alguns momentos, “soluções” políticas. Normalmente, possui um quadro dedicado a expor algum escândalo político em algum lugar do Brasil.

Foi assim que começou minha noite de segunda-feira na cama, deitado e preparado a dormir. Teimoso, de naturalidade hominídea, liguei a TV e fui “zapeando” pelos canais. Como a única coisa um pouco mais interessante era o programa, resolvi ver até onde chegava assistindo, talvez até não aguentar e ir para o universo paralelo dos sonhos. Perdi o sono no começo do quadro, e não pelo assunto do dia (que era um escândalo de corrupção do dinheiro do Fundeb em um município do Piauí), mas sim, porque quanto mais o quadro se estendia, mais eu via informações que “desconhecia”. Eu sabia do contrário! Então estampei na minha cabeça a obrigação de elucidar o que estava acontecendo em forma de texto e cá estou.

Vou ser sincero em dizer que a internet nos trouxe um ótimo conforto: o fato de não se precisar prestar muita atenção em algumas coisas na hora em que elas acontecem, pois normalmente você pode revivê-las através da internet. Assisti novamente ao episódio, desta vez no YouTube, e sabendo que iria formular uma problemática com o que estava passando, anotei os pontos que achei importante pesquisar para descobrir se são realmente verídicos.

Abordagem superficial

Não vou me estender muito sobre as contradições que achei com as pesquisas que fiz depois de ter assistido, citarei apenas três e rebaterei com o que encontrei (citando fontes quando possível, pois tive o lapso horrível de não marcar algumas – sim, sou idiota).

>> Em 2013, 6,1% do PIB acabou no Fundeb (explicarei onde está o problema com esta afirmação no item abaixo) equivalente a mais de 200 bilhões de reais em educação para o país todo.

Vamos lá! O PIB brasileiro de 2013 fechou em aproximadamente 4,8 trilhões de reais. Fazendo uma conta simples, você tem aproximadamente 293 bilhões destinados a educação. O problema é que em 2013 o planejamento do orçamento da União previa apenas 81,1 bilhões para a educação do país (ver aqui). Como foi arrecadado em 2013 quase 300 bilhões, se o orçamento do Fundeb para 2014 é de apenas 117,2 bilhões segundo informações do próprio órgão? Isso não iria contra todo o esquema de funcionamento do próprio Fundeb (ver aqui)?

>> Segundo o programa, a conclusão é que dinheiro não é um fator tão importante para o problema da educação no país, ou que não seria se não fosse o tanto que se corrompe. Bom, eu não tenho muitos argumentos quanto a isso, apenas uma crítica por conta do modo como tudo converge de modo simplório para o assunto “corrupção”. Tudo é afunilado para um inimigo central, e o pior, onde está a solução deste inimigo? O que podemos fazer em nossas vidas contra ele? Dai começa o fatalismo que se espalha na sociedade, e a sensação de impotência em tentar fazer algo pelo país em que vivemos.

De qualquer forma, tenho um dado extremamente importante: o orçamento da União para 2014 prevê um investimento de pouco mais de 3% do arrecadado em educação, e aproximadamente 60% para pagar e amortizar juros de nossa divida interna. Não sei quanto a você, mas eu não vejo isso como sendo um grande investimento em educação.

Não estou querendo dizer que o programa ou alguém está mentindo, mas como há algum tempo acompanho o orçamento da União, e por isso do Fundeb, percebi que a abordagem é tão não esclarecedora quanto superficial.

Irreverência, acidez e marketing pessoal

Até aqui acredito que o título deste texto ainda não tenha ficado claro. Pois se você souber que o programa se apoiou em um discurso policial de Crime e Castigo para apresentar o tema talvez entenda o que quero dizer.

Para quem já leu o tal livro ao qual se fez alusão, acredito que agora fará um pouco mais de sentido (ou talvez não, visto que já vi algumas conclusões ralas sobre o poder da psicologia do Dostoievski, aclamado até mesmo por filósofos como Nietzsche). Para quem não entendeu nada e nem leu, vou tentar explicar a analogia que fiz em minha humilde concepção de mundo.

O programa exibiu uma gravação escondida do prefeito do tal município, na qual ele dizia à pessoa de quem estava recebendo dinheiro desviado/sujo, que ele se achava no direito de cometer tal crime, já que havia gasto muito dinheiro de seu próprio bolso em sua campanha eleitoral. Concordo que fui sardônico ao imaginar que tal colocação não seria mais tocada durante o programa. Mas olhe só, e não é que realmente não falaram mais nada sobre isso?

Agora vamos pensar sobre o que Dostoievski nos ensinou em uma de suas obras mais aclamadas, que fala exatamente sobre isso. Resumidamente, o livro conta a história de um jovem rapaz russo, morador de uma pensão, que às vezes passa fome, e não consegue concluir seus estudos nem arrumar um emprego fixo, para sua sobrevivência, vive penhorando coisas que sua família lhe envia. Até que então, o jovem que sempre se achou uma pessoa de bem, instruída, procurando educação, mas que é simplesmente desmoralizado pela vida, se sente acima da lei comum, e começa a supor um pequeno delito, um furto a loja de penhores. Não continuarei a contar, pois não quero estragar aqui a graça de quem pretende ler o livro, e recomendo muito a leitura.

Além do CQC abordar de forma tão rasa o problema, ainda ofereceu uma visão “policial” (o que normalmente faz, e não apenas este programa) de um tema muito importante, mas que eu adoraria ver sendo mostrado de uma forma mais madura.

Para quem ainda não conseguiu traçar o paralelo (por mais absurdo que possa parecer para alguns) e antes que jorrem desculpas do tipo “ele disse isso simplesmente como desculpa para o roubo, não falou de coração” já registro que discordo. A opinião do Prefeito ladrão é sim válida, e acredito ser genuína. Ele se achou no direito de realizar o roubo, pois havia feito um sacrifício com o mundo (se julga um cidadão de bem, se sacrificando para um bem coletivo). Exatamente a mesma situação do livro. Impressionante, não?

Por que raios existiu este texto? Por que tive o trabalho de procurar informações e escrever ele? Simplesmente porque tanto eu quanto a maioria das pessoas aqui em São Paulo somos bombardeados com a ideia de que o CQC faz um humor “superintelectual”, um humor “sério” e “compromissado” quanto serviço de utilidade pública. Mas infelizmente não é a primeira pisada na bola, e intuo não ter sido esta a última vez que o CQC se mostra muito mais como um programa de humor “simples”, digno de Danilos e Rafinhas, que não levam seus objetivos muito a “sério”.

Por isso, peço que prestem atenção quando forem gritar aos cantos que este programa é o melhor e o mais inteligente da TV brasileira ou principalmente, que salvará o nosso país. Talvez este seja o de uma boa dosagem da irreverência misturada à acidez – às quais se permitem os apresentadores, marketing pessoal (credibilidade por osmose ou repetitividade) e uso de vocabulário refinado.

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Marcos Taranta é bacharel em Ciência da Computação e desenvolvedor de software