Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que a beleza de Lupita é polêmica?

E por que apenas reconhecemos a beleza negra numa perspectiva miscigenatória?

“Tem mulher negra mais bonita que ela”, disseram muitos sobre Lupita Nyong’o quando eleita pela revista People como a maior beleza feminina do mundo (ver aqui). E neste texto pretendo situar esse discurso em duas perspectivas: a primeira, histórica e cultural; a segunda, midiática. No filme pelo qual foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante, Lupita interpreta a escrava Patsey – um “objeto de desejo” para seu feitor Epps, fanático religioso que entende o escravagismo como um dever divino e a castiga brutalmente por não saber controlar o que sente por ela. Numa das cenas, Patsey tem as suas costas nuas destroçadas com um chicote, enquanto os demais escravos prosseguem em sua rotina de trabalho. Afinal, é um dia como qualquer outro.

Todos os episódios do filme são narrados na perspectiva autobiográfica de Solomon Northup, trazendo para o público a história de um homem negro nascido em “ventre livre” no século 19 que acaba numa armadilha, sendo comprado como escravo para trabalhar no sistema de plantation, no sul estadunidense. A narrativa é desesperadora não só pela sucessão das opressões e violências vividas pelo negro e pela negra enquanto mercadorias, mas especialmente por toda a apatia dos que se diziam contrários a essa vida restrita pelos grilhões e pela forma como o filme trabalha esses silêncios em sua dimensão técnica e estética.

Mas preciso retornar ao ponto inicial do texto: Lupita é uma atriz de naturalidade queniana nascida na Cidade do México. Foi não só laureada pelo Oscar de melhor atriz, mas também aplaudida por milhões de telespectadores em todo o mundo – muitos deles negros da África Oriental. Há alguns dias, quando foi designada como a maior beleza do mundo pela revista People, houve uma torrente de comentários na rede de microbloges do Twitter, por exemplo, sendo feitos a respeito de Lupita. E vários deles foram escritos por mulheres quenianas. Na realidade do país, onde certamente existem padrões e ideais de beleza, Lupita é vista como uma das mais bonitas porque a simetria nos seus traços é assombrosa – com uma estrutura proporcional, maçãs saltadas e supercílios delicados. E sua pele tem sido objeto de admiração no mundo não apenas pela cor, mas porque, para quem entende um mínimo de maquiagem, é sabido que sua rotina é quase zero. A pele é lisa. Não tem manchas. E além de tudo isso Lupita é magra, tendo quadris e seios lindos como elementos fundamentais para uma beleza feminina. É por isso que na realidade do Quênia ela é considerada uma das negras mais bonitas que existem, mais além do próprio fato de ser, também, uma mulher queniana.

Lógica ocidental

Pensando esses dados em uma perspectiva de gênero, por exemplo, parece justo que a mulher do Quênia tenha que reunir esse tanto de aspectos para ser considerada um referencial? Não parece um tanto difícil e excludente? Mas gostaria de ir um pouco mais adiante: mesmo no México, que é um lugar de referência na cultura latino-americana em função de seus processos miscigenatórios e suas epistemologias milenares, Lupita ainda assim é lida como WOC – no inglês, woman of color. E seria assim entendida, também, no Brasil ou nos EUA, se tivesse nascido em nosso continente. Mas entre tantas negras brasileiras, por exemplo, existem aquelas que tendemos a considerar mais bonitas que a própria Lupita.

Em discussão recente, um colega disse que a sua namorada negra é mais bela que a atriz. Já não entro tanto no aspecto de gênero extremamente problemático do discurso, que é o de fazer acepções entre belezas femininas, porque de outro lado penso que é saudável haver homens que amem suas namoradas e olhem para elas com ternura, sem objetificá-las como tantos outros fazem no país. E nem é preciso ser brasileiro para que se perceba a exotificação sexual dessas mulheres (ver aqui), tanto nos meios de comunicação brasileiros quanto no próprio dia-a-dia da opressão.

Para mim está claro: não se entende que o título da People, se só fosse dado para mulheres como Halle Berry, estaria reconhecendo uma beleza negra – o que já seria um passo muito grande no âmbito das relações étnico-raciais – com base em uma realidade miscigenada. E os homens não entendem que as suas namoradas, mesmo sendo bonitas, pertencem ainda a uma realidade cultural miscigenada. Não é por acaso que penso nessa problemática pela sua contextualização cultural e histórica. Ela vai muito além da cor de Lupita enquanto mulher negra. É seu rosto o que mais incomoda. Nesse sentido, atribuir o título para negras de nossa realidade cultural exclui do cenário todo o âmbito oriental africano, por exemplo, porque lá não vamos encontrar mulheres negras como as que são consideradas as mais bonitas do mundo na lógica ocidental: o que se tem é uma enorme quantidade de mulheres como Lupita, ainda que em uma diversidade estética, histórica e profissional.

Conhecer o outro

É possível entendermos nessa perspectiva que proponho no texto o quanto a comparação de Nyong’o com mulheres negras tão distintas implica uma problemática ética? É possível entendermos como o prêmio da People vai bem mais longe, no campo da beleza, apresentando mulheres negras como Lupita e tantas outras que, normalmente, só veríamos em editoriais de moda nos quais surgem associadas a savanas, jungle styles, maquiagens excêntricas e elementos do tipo? É possível vermos como a revista People, dando esse título, está propondo uma nova beleza – em vez de simplesmente reconhecer uma beleza negra na perspectiva daquilo que convencionamos como bonito?

Faço essas perguntas por entender que os nossos padrões e ideais de beleza estão excluindo da cena quase todo o continente africano – e não me levem a falar da mulher aborígene na Oceania! – e ainda nos fazem acreditar que não se discute o gosto. Não se discute de fato? Porque mesmo havendo mulheres negras bonitas dentro desses gostos, a partir do ponto em que apagam mulheres quenianas porque não conseguem englobá-las, esses gostos são ainda excludentes, mesmo que um pouco menos em termos étnicos. Por isso escrevi o texto tentando pensar a proposta de beleza da revista: porque não achamos muitas quenianas mais bonitas que Lupita com esse padrão de beleza fundamentado no paradigmamiscigenatóriocomo únicocaminho paraabeleza negra. Enquanto acharmos que racismo se dá apenas pelo discurso e pela imagem em ofensiva direta é evidente que não entenderemos muito sobre o que se vive em nossa cultura. Racismo é prática social pervasiva. Está diluído por entre os sentidos. Não implica apenas em expressões verbais e físicas de preconceitos – como diz uma colega de debate, Jussara Santos. Os reflexos vão muito além, fazendo-se presentes inclusive em nossos ideais estéticos.

Muitas críticas foram feitas sobre o fato de se ter usado a beleza de Lupita como plataforma de entrada para a discussão. Mas numa cultura em que já não discutimos as questões políticas se não for através de imagens, é essencial propor pela própria imagem essa nova beleza e, mais que isso, uma discussão sobre a problemática ética e política da beleza negra nas sociedades contemporâneas. É tão sensível a necessidade das imagens que muitos já apostam na ideia de uma cultura política pós-discursiva, por exemplo, em que já não se faz a política se não houver também a performance, especialmente dentro do campo midiático. E se isso for o necessário para que conheçamos o outro, que se faça dessa forma. A própria atriz queniana entendeu o significado disso e correu pro abraço: confesso que para mim isso foi muito bonito, pois ela é linda, talentosa e merecedora do título, além de ser muito representativa em termos políticos.

O negro tokenizado

Estou escrevendo o presente texto em primeira pessoa, mas, apesar disso, ele não reflete exatamente a minha opinião. Na verdade é uma visualização de como o processo de exclusão pelos gostos tem se dado na nossa cara ao longo de toda a história. Isso está nos livros. Está nas ciências sociais e na literatura. Desde feministas como Audre Lorde tem sido explicado como operam as construções sociais sobre a beleza da mulher negra na sociedade ocidental. Fechar-se para o entendimento urgente dessa realidade histórica significa negar que as opiniões públicas contrárias a Lupita Nyong’o em todo o ocidente existem porque, em muita medida, o paradigma miscigenatório nos trouxe isso. E nessa perspectiva, admitir a formação histórico-cultural dos nossos ideais e padrões de beleza sem, no entanto, pensar em Lupita como uma mulher negra atraente não é pecado, afinal de contas o gosto já foi construído. Mas admitir essa sua beleza é um passo importante, especialmente porque também devemos desassociar esse reconhecimento daquilo que só pode ser considerado bonito se houver uma perspectiva sexual envolvida, ou seja, de um processo no qual a beleza negra só pode ser percebida se estiver prioritariamente ligada à possibilidade do seu consumo. Já me fiz entender nesse aspecto?

Admitir isso tudo não significa negar o direito ao gosto que cada um tem e pode exercer livremente, mas saber que esse paradigma miscigenatório ainda está por aí e que deixar a discussão de lado significa, também, sustentar um sistema de exclusão étnico-racial através dos gostos midiatizados. Por isso, criticar o gosto pelo gosto não é trajeto para lugar algum: precisamos entender, em verdade, quais agendas atendem e o que eles podem esconder. Lançando agora um olhar sobre a foto que encabeça o presente texto, a discussão que eu gostaria de propor aos leitores – para terminar – é um vídeo publicado pelo vlogueiro Felipe Neto na rede de canais do YouTube. Todas as considerações que faço no texto são válidas para entendermos o vídeo, mas preciso atentar para o momento memorável em que Neto chama uma trabalhadora doméstica negra para dar sua opinião contrária sobre Lupita. Essa liberdade de expressão deve ser garantida a todo custo, mas o cenário no qual isso se dá parece muito mais sério do que o vídeo em si faz pensarmos a partir do ponto em que um homem branco convoca a palavra de uma pessoa negra pra confirmar o seu discurso. Isso significa tratar o sujeito como token ou, melhor dizendo, uma pecinha estratégica do jogo em seu todo. Esse é o papel do negro tokenizado pelos brancos: carimbar tudo que eles já disseram sem entrar na roda e discutir também. É um exemplo concreto de como contextualizamos pessoas despolitizadas no cenário político brasileiro e as desautorizamos do seu estatuto de personagens concretas daquilo que elas mesmas estão vivendo desde o nascimento. Nada que não tenhamos vivido na trajetória histórica do país desde a tal abolição da escravatura.

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Thales H. Pimenta é jornalista e mestre em Ciência da Comunicação