Friday, 20 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Salvacionices’ paranoicas no mundo da política

Em sua sempre interessante coluna no Estado de S.Paulo, Roberto Damatta [“Onde estamos“, 23/4/2014] transcreve uma carta que teria recebido do professor e amigo Richard Moneygrand. Trata-se de um intelectual aposentado, norte-americano e “brasilianista” (aliás, como já nos tinha chamado a atenção o professor Moniz Bandeira [“Divagações de um brasilianista“. Observatório da Imprensa, 4/9/2012], o termo só se aplica aos norte-americanos que pensam o Brasil. Na Europa são chamados de “africanistas”). Moneygrand é um personagem inventado por Roberto Damatta para pensar o Brasil e, desta vez, nos falou sobre um aspecto interessante que estará em questão nesta conjuntura político-eleitoral que vivemos atualmente: as “resoluções messiânicas” para os nossos problemas.

De acordo com Moneygrand, atuar sobre uma conjuntura de disputa eleitoral deste porte não é nada simples e fácil, pois exige atitudes nem sempre confortáveis de um lado ou de outro. Ações, valores e princípios são questionados e a crítica é promovida em alta escala.

A sina de uma crença

No caso brasileiro, o que estaria sob avaliação é “uma história transcendental que iria libertar os oprimidos e os miseráveis e os diretores dessa fase tidos como politicamente invencíveis”. Para Moneygrand, será inevitável entender-se melhor (“desmascarar”) os chamados “salvadores do Brasil” e contrastá-los com a proliferação de escândalos de corrupção, a avidez pelo enriquecimento pessoal e uso de privilégios e o aparelhamento do Estado para fins de interesse pessoal.

Ainda segundo Moneygrand, esta seria uma sina brasileira, ou seja, a “crença numa resolução messiânica para todos os seus problemas; daí a atração pelo conceito de ‘revolução’ em toda a latinidade americana”. O tema é dos mais interessantes e gostaria de trazer algo da psicanálise para ajudar no debate sobre o entendimento do poder e seus arredores.

Se estamos falando de “crença messiânica”, estamos nos referindo a algo que, em maior ou menor proporção, está muito próximo dos conceitos de “líder carismático” e de “populismo”. Vejamos. Um esclarecimento inicial: a sucessão é para o governo da presidente Dilma, mas não nos enganemos, se há um projeto “messiânico” em questão, como nos sugeriu Moneygrand, ele foi construído pelo ex-presidente Lula, que é, para quem, o nosso olhar deve se voltar. Claro que seria um grande equívoco metodológico tentar trazer o ex-presidente para o divã, mas podemos olhar com atenção os “estilos de atuação na política” e nos arriscarmos a algumas considerações.

Liderança messiânica

Para isso, Eugène Enriquez (As Figuras do Poder) é um exemplo de autor que fornece subsídios teóricos interessantes para entender o campo da política sob o olhar da psicanálise. Segundo ele, o poder tem sempre uma “face” encarnada em um indivíduo ou grupo e desvelar essa “face” é fundamental para se entenderem alguns dos motivos das ações e palavras dos agentes políticos. Se olhássemos, então, com atenção, para o estilo de atuação do ex-presidente Lula não seria tão arriscado defini-lo como predominantemente carismático/paranoico.

Trata-se de um estilo de atuação que está assentado sobre algumas “fantasias”. Quais? E de que liderança, então, estamos falando?

>> A fantasia de que a “fala” organiza o mundo – Tudo depende, essencialmente, do discurso. Qualquer dado da realidade parece sem valor diante da fala do líder, que avaliza a tudo. Se o discurso é peça fundamental no campo da política, com este líder ele ganha uma relevância exagerada. Ele quer ser ouvido, pois com sua fala, organiza e explica o mundo de acordo com os seus interesses. O viés carismático vem de uma habilidade de ensaiar metáforas populares a todo instante, como, por exemplo, no recorrente uso do futebol pra explicar diversos fatos;

>> A fantasia de que existem “explicações definitivas” – É um líder que não abre mão de suas certezas absolutas. Suas convicções são o espelho de sua “grandeza” e sua mensagem é de “salvação” para a sociedade. É um “messias” que anuncia uma “nova origem” a partir de sua chegada ao poder, como se tudo se explicasse a partir de um “… nunca antes na história desse país…”;

>> A fantasia de que há inimigos por toda parte – Há uma idealização da imagem de “conspiradores” (a “elite golpista”, a “mídia de direita”, a “classe média egoísta”, os “brancos de olhos azuis”, os “inimigos do povo” etc.), assim, só existem dois tipos de indivíduos para este líder: aqueles que ele reduz a objetos de sua dádiva e aqueles que precisam ser “destruídos”. Muito comum que esses “inimigos” sejam fabricados pelo próprio discurso deste líder. Um exemplo está na recorrente e obsessiva comparação estatística com tudo o que antecedeu ao governo Lula, especialmente o governo Fernando Henrique Cardoso. Manter esta obsessão pela comparação é fundamental para a existência de sua “liderança” e demarcação de um “território”, pois lhe garante uma “identidade” e um “lugar” na política e na vida;

>> A fantasia de ser uma figura “central” no mundo – Coloca-se, então, na posição de “centro” do mundo. Com ele que surge uma nova “lei” (o desprezo ao STF e incapacidade de assumir erros nos falam um pouco dessa quase impossibilidade de sujeitar-se às regras), é uma espécie de “herói criador”, um “pai único e verdadeiro”, que se pretende “onipotente”, sem limites e livre de qualquer ameaça. Não acredita na história, pois é ele quem a “começa” a partir de sua chegada ao poder;

>> A fantasia de que é necessário “transformar” o mundo – Sua fala traz sempre a “verdade”, quase de inspiração divina. O ex-presidente Lula dizia: “…não existe ninguém mais ético do que eu…”, e, por vir das classes populares, trazia consigo a “verdade”. É com essa “origem” que ele se transforma no “eleito”, no “campeão”, enfim, no “cara”, como um dia disse Obama;

>> A fantasia de que “tudo é possível” – Para este líder, finalmente, é fundamental criar uma “nova sociedade”, afinal “tudo começa” com ele e acredita que, para isso, “tudo é possível” e justificável. É aqui que os delírios encontram espaço para florescer, inclusive aqueles que classificam corruptos como simplesmente “presos políticos”;

“Nós x eles” e a democracia

Todos nós, individualmente, possuímos traços que nos realçam a persecutoriedade. Alguns um pouco mais. E líderes políticos não escapam, obviamente, a estes traços. Alguns um pouco mais, evidentemente. O ex-presidente Lula, me parece, usou e abusou desse estilo. Não o condeno, afinal, é o seu estilo de atuação na política. Nem diria que foi sempre assim. Um olhar mais detido sobre a evolução de sua postura e discurso políticos mostra que ele transformou-se com o tempo. Mudança significativa, porém, aconteceria no auge da conjuntura crítica do escândalo do mensalão, quando passaria a adotar, de forma frequente, as linhas deste estilo carismático/paranoico. Mas, isso é assunto pra outra conversa.

O interessante é que para manter estas fantasias o líder carismático/paranoico precisa tensionar a sociedade, num permanente conflito entre “nós x eles”. Ele “movimenta” as relações sociais a um ponto tal de conflito que ameaça, por vezes, as instituições democráticas. É nesse estímulo ao “conflito permanente” que o líder paranoico tenta apropriar-se do conceito de “povo” (o único conceito legítimo). Ele se infiltra, profundamente, então, no imaginário popular.

Não se trata, portanto, de um estilo de atuação essencialmente democrático. Aliás, há muito o que se conversar sobre essa tal “essência” da Democracia. Mas, é decisivo, então, sustentar-se a capacidade crítica, oferecer uma nova possibilidade de recontar a história do país, manter as instituições o máximo livres e independentes. Ou atribuímos à democracia um valor universal, onde o “povo” é transformado em “cidadão” (e não estou dizendo meramente “consumidor”), ou continuaremos nos apegando a “messias” e “salvacionices”, mantendo a nossa sina, como bem assinalada por Moneygrand.

Olhar, então, para o estilo de atuação dos governantes, e seus pormenores discursivos, pode dar ao campo da política um especial interesse. Neste caso, o que se percebe é um conjunto de fantasias que povoam o líder carismático/paranoico. Moneygrand conclui sua análise lembrando que há uma chance de dispensarmos estes “Messias”, mas desde que comecemos mesmo a “desconfiar que nada neste mundo de Deus pode ser resolvido paulatinamente, a não ser por todos e cada um”.

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José Henrique P. e Silva é psicanalista e cientista político