José Saramago (1922-2010) costumava dizer que acabaríamos transformando a língua em grunhidos depois que a internet popularizou “abs” para abraços, “bj” para beijo, e outras eliminações para facilitar a comunicação. Ele próprio não admitia que as editoras brasileiras “traduzissem” seu português castiço – e não é que virou um dos autores mais populares no Brasil?
Causam estremecimento os incentivos fiscais que a escritora Patrícia Engel Secco obteve para “simplificar” em 300 mil exemplares um mestre da língua portuguesa, Machado de Assis. E ela ainda se espanta com a petição assinada por seis mil brasileiros, pedindo ao Ministério da Cultura, que a aprovou em 2009, que agora a impeça de dar a machadada em Machado.
Patrícia se diz horrorizada. Sua intenção é querer o livro “na casa dos mais simples”. “É triste pensar que Machado de Assis não possa ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que não gosta de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário” (O Estado de S.Paulo, 9/05/2014). O triste é achar que o sr. José do Espinheiro ou o faxineiro Cristiano vão ler Machado. Não vão. Vão ler Patrícia Secco.
Por que os mais simples devem ser condenados a permanecer mais simples? Por que o sr. José, que não gosta de ler, leria a versão desinteressante de Patrícia Secco em vez de se encantar com as peças pregadas por Machado nos seus leitores? Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), historiador e antropólogo estudioso da cultura brasileira, sempre definiu o estilo de Machado como uma tentativa bem sucedida de aproximação com a palavra falada, a narrativa soando bem coloquial, oral.
Mas Patrícia afirma: “Ninguém sabe quem é Machado de Assis”. O projeto, ela diz, é para as faxineiras. Faxineiras não merecem ser introduzidas a Machado? Por que o Ministério da Cultura não promove um projeto de leitura de Machado para faxineiras, para o José, para o Cristiano? Que inversão foi essa, aprovada nas nossas barbas? Se a prática colar – essa de se dirigir com simplicidade aos mais simples – vamos acabar cumprindo a profecia de Saramago e grunhir algo que um dia, numa civilização mais culta, foi Machado. Cumprindo outra profecia, a do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), de ser uma terra que foi da barbárie à decadência sem passar pela civilização.
“Qualqui foi a treta?”
O crítico literário mais importante do mundo, o americano Harold Bloom, 84 anos, não fez nenhum favor quando incluiu Machado de Assis em Gênio – os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura (Editora Objetiva, 2002). “Li Brás Cubas há muitos anos, recordo de ter dado risadas a cada página”, disse o crítico a Sylvia Colombo (Folha de S.Paulo, 21/1/2011). A sua “bíblia” literária situa Machado ao lado do francês Gustave Flaubert, do português Eça de Queirós, do argentino Jorge Luis Borges, do italiano Ítalo Calvino.
Depois dessa investida contra Machado, não seria delírio nem realismo fantástico imaginar Simão Bacamarte, personagem de O Alienista, ampliando os hóspedes da Casa Verde, como sugeriu o professor de literatura comparada João César de Castro Rocha (Estadão, 9/5/2014). No genial conto de Machado, o dr. Bacamarte, médico psiquiatra, vai trancafiando os habitantes de Itaguaí em grupos até incluir a cidade inteira no manicômio que construiu. Para ele, todos tinham um tipo de demência. Por que não aqueles que querem ser mais machadianos que Machado? Afinal, o dr. Bacamarte achou desvios nele próprio e acabou se internando.
Será precisamente esse conto/novela de Machado o primeiro “simplificado” a ser lançado por Patrícia com 300 mil exemplares, onde a autora troca palavras como “sagacidade” por “esperteza”
Aproveitando a deixa, três autores foram convidados a “simplificar” Machado (Folha, 10/5/2014). Vale a pena comparar o resultado:
Trecho original de Missa do Galo de Machado:
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia noite”
Nova versão de Santiago Nazarian, autor de Mastigando Humanos ( Record):
“Nunca entendi o papo que tive com uma tiazinha há uma pá de tempo. Eu tinha uns dezessete, ela trinta. Tinha combinado com um bróder aí de ir à missa do galo; nem dormi nem nada. Combinei de colar no pico dele à meia noite”
Os outros dois autores, no intuito de seguir o projeto de “simplificação” de Patrícia Secco e atrair as faxineiras, o farmacêutico, o que não gosta de ler, reescreveram Machado por pura gozação ao projeto de Patrícia.
No trecho de Memorial de Aires onde se lê “como se me chamasse peralta”, Alexandre Vidal Porto achou por bem utilizar “como se me chamasse sacana”. E Joca Reiners Terron, autor de A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves (Companhia das Letras), “traduziu” o trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas “mas, com a breca! quem me explicará a razão dessa diferença?” por “mais que caraí: quem vai contá qualqui foi a treta?” Patrícia certamente aprovaria a linguagem bem popular para entrar na casa do povo.
Língua rica
Se somarmos este projeto ao livro lançado no ano passado, Uma Vida Melhor, da professora Heloisa Ramos, considerando correta a falta de plural na linguagem oral porque “escrever é diferente de falar”, podemos imaginar que português vamos ouvir – neste caso com aprovação do Programa Nacional do Livro Didático do Ministério da Educação, do qual o livro faz parte. Em linguagem bem popular, estamos literalmente fritos. E nem será preciso ir tão longe quanto foi o presidente russo Vladimir Putin, que na semana passada assinou uma lei proibindo o uso de palavrões em filmes, músicas, livros e apresentações em TV e teatro, com multa equivalente a 160 reais para os artistas.
Tivemos a sorte de ver a Câmara dos Deputados aprovar, semana passada, a não autorização prévia do biografado no projeto – que ainda vai ao Senado – sobre as biografias. Temos alguma chance se o malfadado “Procure Saber” criado por Paula Lavigne for derrubado. E se agora também o Ministério da Cultura reconhecer o erro e impedir a falsificação de Machado de Assis. Ainda poderemos ver as faxineiras aprenderem o português correto, a verdade sobre cada biografado, e acabar gostando da coisa. Afinal não é muito lisonjeiro se colocar no lugar do burro, como ironizou a matéria da Folha de S.Paulo de sábado (10/5), cujo título foi “Machado prá burro”.
“Li três vezes. Na primeira não gostei mas me encantei com o final em aberto” – Luana Lopes Lara, de 17 anos, declarou à edição desta semana de Veja que Dom Casmurro tornou-se seu livro indispensável.
E não nos sentiríamos tão inferiorizados ao utilizar a língua de Camões enquanto a Espanha briga para defender as palavras estrangeiras que enriqueceram o espanhol (El País, 20/4/2014), como almofada trazida pelos mouros; os nomes próprios Ezequiel ou Gabriel e amén ou Satanás, introduzidas pelos judeus; dossier, cabaré, debut ou menu legadas pelos franceses; esfumar, capitão e fragata, adaptadas do alemão; soneto, lira e novela copiadas do italiano; thriller, clube e show aprendidas dos ingleses; tomate, tequila, canoa doadas pelos povos indígenas.
Se os espanhóis querem enriquecer sua língua, por que nós deveríamos empobrecer a nossa? Cabral, Colombo, Minc, respondam!!!
Norma Couri responde:
A Sírio Possenti: li o livro.
A Diego Guimarães: sou formada também em Letras
A Gilberto de Oliveira: o “filhote de Tio Sam” é, como eu disse, o maior crítico literário do mundo. Saramago tem português castiço. Veja não tem nada a ver com Literatura Revisitada. Seu comentário só confirma a tese de Lévi-Strauss (vai no Google e descobre quem é): vamos passar da barbárie a decadência sem chegar à civilização…
A Daiana Barasa: leia os parágrafos 3 e 4 deste artigo e descubra o outro lado. (N.C.)
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Norma Couri é jornalista