Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Me exponho logo existo

Invejo quem não tem celular. Existem e são admiráveis. São poucos. Estão em extinção. Quando precisam falar com alguém, ligam de um fixo. Admiro pessoas que ligam do fixo. São econômicas. Sem contar que a ligação é clara e não cai.

Invejo quem não tem carro, nem carta ou carteira de motorista. Vai a lugares a pé, usa “condução” ou bicicleta, e volta de carona ou racha um táxi. Nunca soprou num bafômetro. Não estão em extinção. Negam a revolução industrial. São pessoas mais econômicas e descomplicadas. Talvez por isso, mais felizes.

E invejo quem não está no Face, Twitter, Insta, Linkedin, G+, WhatsApp, em lugar nenhum: o que não existe virtualmente, nunca “teve” Orkut nem sabe o que é o extinto MSN. São seres analógicos, mais evoluídos do que a maioria. Caminham, olham o nada ou algo sem a urgência de um registro fotográfico ou um comentário, uma curtida, uma postagem. Mandam cartas e cartões-postais escritos à mão. Negam a revolução tecnológica. Estão no topo da linha evolutiva.

Sim, existe gente que não se comunica, nem curte, nem posta. Não critica, nem milita, nem lamenta a morte de um ídolo para amigos, conhecidos, seguidores desconhecidos e amigos de amigos. Não se indigna, não se revolta, não se mostra. Não mostra seus gatos, seus pratos, sua mãe no dia delas. Nem relata suas viagens. Não pensa, não expõe, não se exibe para centenas ou milhares de pessoas. Logo, não existe? Nem o pôr do sol retrata. Nem a lua tem o seu momento. O que dirá de um nascer do sol? Existe?

Sobre os guaranis-caiovás, o alienado analógico não emitiu opinião em público, nem militou contra a sua extinção. Rachel Sheherazade? Nem sabe quem é. Não entende por que algumas celebridades aparecem com cartaz escrito “bring back our girls”. Não lamenta para muitos a onda de linchamentos, o descaso com o dinheiro público, não cita Mahatma Gandhi, Caio Fernando Abreu, Nelson Rodrigues, Cazuza, Verissimo, Renato Russo, Millôr.

Ainda não anunciou sua nova posição ideológica, nem em quem não vai votar, não elogiou a simplicidade de José Mujica, o presidente uruguaio, não se revoltou contra a perseguição a gays e garotas da banda Pussy Riot na Rússia, não riu das barbeiragens que eles, os russos, bêbados, praticam nas estradas, nem comentou que no Rio de Janeiro se diz “bandalha”, não barbeiragem, ou transgressão.

Não postou fotos do carro sem permissão na vaga de deficiente, do prefeito de Londres indo de bike pro trabalho, do primeiro-ministro do Reino Unido indo de metrô pro trabalho, do príncipe William flagrado na classe econômica como um plebeu. Não viu o comercial que todos devem ver, o vídeo a que todos devem assistir, a foto que vai fazer as pessoas pensarem de outra maneira, fotos que vão mudar a vida, a rotina, a forma como trabalhamos, do animalzinho que quer apenas ser amado, do outro que, em vez de devorar a presa, cuida dela.

Não soube da cidade que DEVE visitar, do livro que DEVE ler, do filme que DEVE ver, do clipe que TEM que assistir, do hotel em que um conhecido ficou para ser invejado, da nova banda de que TODOS estão falando, da criança que surpreende e faz algo incrível e inesperado, que prova como existe inteligência em quem menos se espera. Não leu sobre o alerta contra golpes praticados, a torcida para que não haja Copa, que algum repórter internacional falou (mal) de nós, sobre o complexo de vira-lata que temos, e que a unanimidade é burra.

Não viu a foto de uma flor que desabrochou numa selva de pedras, a piada, a gostosa, a amiga fazendo biquinho, a amiga fazendo cara de sexy, a lista do que difere os homens das mulheres, as últimas sobre maconha, as fotos da repressão policial brutal, de como era antigamente, o filme raro encontrado, bons exemplos feitos por pessoas altruístas, enquanto o acomodado só reclama, a denúncia contra maus-tratos contra animais, o poema, a charada, o superatleta que faz coisas com uma incrível habilidade, voa sobre abismos, pedala sobre montanhas, a ilusão de ótica que faz bolinhas se moverem e que parece mágica, o pedido de que “alguém tem que fazer alguma coisa”, as provas de que houve a realização de um sonho, o astro com uma banana na mão. Nem descobriu que alguns amigos têm opiniões aterradoras.

Mais discretos

Pensar que há dez anos não existiam redes sociais. Há 20, a internet não era regulamentada, nem existia o consórcio W3C (World Wide Web Consortium). Há 30, não tinha celular nem computador pessoal no Brasil. A maioria não tinha telefone nem máquina fotográfica.

E éramos bem informados e educados. Militávamos contra a possível extinção de uma nação indígena, protestávamos contra linchamentos e o descaso com o dinheiro público, líamos Mahatma Gandhi, livros de Caio Fernando Abreu, Verissimo e Millôr, comprávamos discos do Cazuza e Renato Russo, anunciávamos nossa posição ideológica em buttons, broches e pins na jaqueta, víamos o comercial que todos deviam, sabíamos do livro que DEVÍAMOS ler, do filme que DEVÍAMOS ver, da nova banda de que TODOS estavam falando, do “complexo de vira-lata”, cria do Nelson Rodrigues (cujas peças assistíamos) em maio de 1958, meses antes de o Brasil ganhar a primeira Copa do Mundo, numa crônica publicada na Manchete Esportiva, relembrada por Ruy Castro no livro Os Garotos do Brasil (Foz).

Víamos fotos da repressão policial brutal, desvendávamos a charada, o poema, a ilusão de ótica que faz bolinhas se moverem, no livro de ilusões de óticas que todos tinham.

Éramos mais discretos. Menos ansiosos. Não precisávamos da aprovação alheia. Não precisávamos chamar tanta atenção, nem criar a ilusão de que somos melhores do que somos. Somente éramos.

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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo