Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O próximo pode ser você

Dia 5 de maio, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu após ser violentamente espancada por uma turba alucinada no Guarujá (SP). Crente de que detinha o poder de fazer justiça, a horda linchou-a motivada por uma única razão: ela se parecia com outra mulher acusada de sequestrar crianças para rituais de magia negra. Mesmo sem qualquer informação sobre o sumiço das crianças ou a veracidade da acusação, a truculência foi feita, apoiada, filmada e divulgada por incontáveis veículos de comunicação, numa corrida irresponsável pela conquista da audiência. Fabiane era inocente. Após a constatação, retratações começaram a aparecer. Mas e se ela fosse culpada? Merecia morrer daquela forma? Um dia após o episódio, uma estudante de 22 anos evitou a morte de um jovem que acabara de roubar um celular na Zona Oeste do Rio. Outra multidão ensandecida e proclamando palavras de ordem como “mata”, “deixa morrer” e “bandido bom é bandido morto”, queria sangue, morte e vingança.

Em fevereiro deste ano, um homem de 47 anos foi espancado em Olinda (PE). Morreu porque moradores o confundiram com um suspeito de estupro e o atacaram, enquanto dormia, em um terreno baldio. Há quase 25 anos, em Matupá (MT), outro grupo agrediu, amarrou e queimou ainda vivos três homens acusados de roubo. Um deles pedia perdão a Deus enquanto agonizava e tudo era filmado com requintes de crueldade. Em 19 de maio deste ano, um rapaz acusado de furtar a carteira de uma mulher no terminal do Boqueirão, em Curitiba (PR), também foi espancado. Ficou desacordado na via por alguns minutos até recobrar a consciência e entrar num ônibus, desorientado.

A inoperância do poder público, o fracasso dos sistemas prisional e educacional e a permanente sensação de insegurança e insatisfação vêm animalizando a sociedade e despertando os instintos mais primitivos do bicho homem. Acreditamos que, em nome da justiça, da razão e da “verdade”, podemos tudo.

Imagens e discursos

Para impedir crimes, eliminamos e apoiamos o extermínio “daqueles que não prestam”. Em defesa da família, combatemos a homossexualidade com discursos inflamados, carregados de violência e intolerância. Em nome de Deus e apoiados pelo fundamentalismo religioso, destruímos terreiros de Umbanda, centros espíritas, agredimos pais de santo e rejeitamos o direito individual de crença e diversidade religiosa. Em nome da Justiça, condenamos os direitos humanos e amaldiçoamos quem insiste em defendê-los.

E a imprensa? Contribui com isso tudo. Sem generalizações, obviamente, porque são incontáveis os profissionais qualificados com os quais temos a oportunidade de contar. Falo da chamada imprensa marrom, aquela integrada por oportunistas travestidos de jornalistas, mas que exerce enorme influência na população hoje em dia. São comentaristas, apresentadores, colunistas e até os que se autodenominam “especialistas em segurança pública”. Bem treinados para falar o que o senso comum espera ouvir, incitam o ódio e banalizam o mal. Apoiam espancamentos e humilhações em praça pública e transmitem informações sem a devida apuração. Uma atitude tão grave quanto a outra. Ignoram o compromisso que assumiram com a sociedade e o fato de que liberdade de expressão implica responsabilidade. Esquecem-se de que são capazes de encorajar bons comportamentos e provocar transformações.

Questiono-me sobre a lógica ética de não noticiar suicídios – para que o exemplo não inspire mais gente a fazer o mesmo – mas propagar imagens e discursos sensacionalistas e abusivos. Motivados pela busca da audiência e necessidade de defender pontos de vista particulares, muitos tornam a agressão algo banal, necessária para a ordem do sistema e a garantia do progresso.

Não podemos regredir

Em março de 1994, esta mesma imprensa desgraçou a vida de várias famílias. Na época, duas mães denunciaram os donos da Escola Base, em São Paulo, o motorista do transporte escolar e um casal de pais de um aluno por abuso sexual. Mesmo sem investigação, a acusação foi aceita pelo delegado e divulgada como um furo de reportagem. O assunto foi abordado à exaustão. Por falta de provas, o inquérito foi arquivado e dia 16 de abril, aos 70 anos, Icushiro Shimada, o dono da escola, morreu vítima de um infarto. A esposa faleceu em 2007, em virtude de um câncer. Eles partiram amargando as consequências de um dos maiores erros cometidos pela mídia na história.

É urgente compreender que os que são contra a justiça feita com as próprias mãos não são a favor da impunidade. Foram necessários anos de desenvolvimento para que conquistássemos civilidade e não podemos regredir agora. Não desse jeito.

Jean-Paul Sartre, filósofo francês, um dia defendeu que “a violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”. Que nos lembremos disso em nossos atos e comunicações futuros. Amanhã, a vítima de algozes dominados pela desinformação, intolerância e irracionalidade pode ser você.

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Claudia Guadagnin é jornalista e pós-graduada em Antropologia Cultural