Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem que vigia os livros do ‘rei’

Há, em algum lugar desta cidade, um depósito especial, lacrado, vigiado. Não sei dizer onde fica, em que rua, bairro, nada. Nunca vi, não posso descrevê-lo, sei apenas que existe, é real, sobre ele foram publicadas notícias, veiculadas mil informações. Nunca se divulgou tanto este refúgio, onde dormem cerca de 10 mil volumes contendo a biografia do “rei”. Acompanhava pela televisão a entrevista que o autor da proibida biografia de Roberto Carlos, Paulo César de Araújo, dava ao Edney Silvestre. À minha frente, os jornais noticiando a visita do papa ao Santo Sepulcro em Jerusalém. Meus olhos corriam do jornal para a telinha, tive uma sensação estranha.

Araújo escreveu novo livro, desta vez contando as peripécias, a odisseia que viveu com a proibição da obra na qual ele colocou dez anos de sua vida. Não se sabe agora qual será a posição do “rei” diante deste novo livro. Ah, o rei! Na minha juventude havia uma marchinha carnavalesca que era o maior sucesso. Composta por Haroldo Lobo e David Nasser em 1949, dizia: A coroa do rei /Não é de ouro e nem de prata. /Eu também já usei / E sei que ela é de lata!

Hoje, mais do que nunca, a marchinha é atual. Os carnavalescos faziam críticas que – vemos agora – atravessaram incólumes o tempo, são atuais. No momento em que o rei Roberto Carlos (quem o assessora?) condenou a biografia escrita por Paulo César ao ostracismo, viu a coroa dele rolar pelo chão. Pensar que na juventude nós achávamos o “rei” o máximo, um transgressor, a correr pelas curvas da estrada de Santos, mandando que tudo o mais fosse para o inferno. Não era, não é.

Cerca de dez mil livros apodrecem num depósito. Não sabemos as condições de conservação destes volumes. Seu destino, segundo o “rei”, seria inicialmente a fogueira. Recuou, quando a imprensa lembrou que Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich, nos anos 30, tinha queimado milhares de livros em fogueiras públicas. Foi então decretada a “prisão” dos volumes. Que apodreçam na solidão de uma masmorra, decidiu-se. O papel é frágil e sob determinadas condições acaba se desfazendo. Que feneça por si a biografia do Roberto. Assim, os exemplares foram confinados num depósito, trancado e com um vigia. Agora, aqueles são os livros do “rei”.

Imagens e notícias

Há dias penso nesse depósito de livros mortos, porque livros que não podem ser abertos e lidos são mortos. Penso, ou li, que há um homem que vigia este sacrário (ou séria sarcófago?). Mergulhei em suposições. Será que este homem existe? Se existe, sabe o que vigia? Algum dia perguntou por que vigia? Algum dia teve vontade de abrir a porta e apanhar um livro e ler? De levar para casa? Nunca bateu nele essa curiosidade? Afinal, um caso tão falado e comentado deve ter chegado ao conhecimento dele? Ou será que tem orgulho? Quando lhe perguntam:

– Quem é você?

Ele responde:

– Sou o vigia dos livros do “rei”.

Talvez ele pense que são os livros que o “rei” escreveu, ou que façam parte da biblioteca do “rei”. Deve ostentar o título com orgulho, contar aos vizinhos, usar o “cargo” como motivo para dar uma carteirada, mostrar seu status. Algum dia, no futuro, poderá contar aos netos o que foi. E quando os netos indagarem:

– Mas o que o senhor fazia, vovô? Como era seu trabalho?

Ele responderá:

– Ficava ali, vigiando.

– Olhava para a porta o tempo inteiro?

– Claro, era minha função.

– Nunca desviava os olhos?

– Às vezes, dava uma andadinha, voltava, sentava-me e vigiava.

– Nunca tentaram roubar o depósito?

– As pessoas não sabiam o que havia ali, era uma coisa tranquila.

Vislumbrei, ainda, este vigilante voltando para casa no fim do dia, lavando as mãos e sentando-se para jantar. A mulher serve a comida e pergunta, como todos os dias:

– Então, meu amor, como foi hoje?

– Bem.

– Muito trabalho? Muita agitação?

– Nenhuma.

– Muitos problemas? O que aconteceu de diferente?

– Nada, mulher! É um lugar sossegado. Foi promoção para mim, a quadra é deserta, às vezes vem um pessoal fumar crack, depois se vai. Ouço uns barulhinhos de vez em quando lá dentro, não vou ver. Não me autorizaram. Tudo o que tenho a fazer é ficar vigiando para que ninguém entre. Estou ali há anos e nunca apareceu ninguém querendo entrar. Fiquei curioso um dia quando soube que ele, o homem que mandou prender os livros, namorou a Maysa e a Sonia Braga. Nossa, eram lindas! Mulheraços! Que inveja. Ou foi mentira, os jornais inventaram isso? Se foi mentira, eu, se fosse ele, confirmava a mentira. Sonia Braga e Maysa, puxa. O cara era bom paca, não?

– Era…

Disse a mulher chochamente e serviu a sopa, era uma noite fria e faltava água nas torneiras, ela estava preocupada é como arrumar a cozinha depois. Então, de repente, uni as imagens, as notícias. Aquele depósito de livros é um santo sepulcro.

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Ignácio de Loyola Brandão é colunista do Estado de S.Paulo