Há, em algum lugar desta cidade, um depósito especial, lacrado, vigiado. Não sei dizer onde fica, em que rua, bairro, nada. Nunca vi, não posso descrevê-lo, sei apenas que existe, é real, sobre ele foram publicadas notícias, veiculadas mil informações. Nunca se divulgou tanto este refúgio, onde dormem cerca de 10 mil volumes contendo a biografia do “rei”. Acompanhava pela televisão a entrevista que o autor da proibida biografia de Roberto Carlos, Paulo César de Araújo, dava ao Edney Silvestre. À minha frente, os jornais noticiando a visita do papa ao Santo Sepulcro em Jerusalém. Meus olhos corriam do jornal para a telinha, tive uma sensação estranha.
Araújo escreveu novo livro, desta vez contando as peripécias, a odisseia que viveu com a proibição da obra na qual ele colocou dez anos de sua vida. Não se sabe agora qual será a posição do “rei” diante deste novo livro. Ah, o rei! Na minha juventude havia uma marchinha carnavalesca que era o maior sucesso. Composta por Haroldo Lobo e David Nasser em 1949, dizia: A coroa do rei /Não é de ouro e nem de prata. /Eu também já usei / E sei que ela é de lata!
Hoje, mais do que nunca, a marchinha é atual. Os carnavalescos faziam críticas que – vemos agora – atravessaram incólumes o tempo, são atuais. No momento em que o rei Roberto Carlos (quem o assessora?) condenou a biografia escrita por Paulo César ao ostracismo, viu a coroa dele rolar pelo chão. Pensar que na juventude nós achávamos o “rei” o máximo, um transgressor, a correr pelas curvas da estrada de Santos, mandando que tudo o mais fosse para o inferno. Não era, não é.
Cerca de dez mil livros apodrecem num depósito. Não sabemos as condições de conservação destes volumes. Seu destino, segundo o “rei”, seria inicialmente a fogueira. Recuou, quando a imprensa lembrou que Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich, nos anos 30, tinha queimado milhares de livros em fogueiras públicas. Foi então decretada a “prisão” dos volumes. Que apodreçam na solidão de uma masmorra, decidiu-se. O papel é frágil e sob determinadas condições acaba se desfazendo. Que feneça por si a biografia do Roberto. Assim, os exemplares foram confinados num depósito, trancado e com um vigia. Agora, aqueles são os livros do “rei”.
Imagens e notícias
Há dias penso nesse depósito de livros mortos, porque livros que não podem ser abertos e lidos são mortos. Penso, ou li, que há um homem que vigia este sacrário (ou séria sarcófago?). Mergulhei em suposições. Será que este homem existe? Se existe, sabe o que vigia? Algum dia perguntou por que vigia? Algum dia teve vontade de abrir a porta e apanhar um livro e ler? De levar para casa? Nunca bateu nele essa curiosidade? Afinal, um caso tão falado e comentado deve ter chegado ao conhecimento dele? Ou será que tem orgulho? Quando lhe perguntam:
– Quem é você?
Ele responde:
– Sou o vigia dos livros do “rei”.
Talvez ele pense que são os livros que o “rei” escreveu, ou que façam parte da biblioteca do “rei”. Deve ostentar o título com orgulho, contar aos vizinhos, usar o “cargo” como motivo para dar uma carteirada, mostrar seu status. Algum dia, no futuro, poderá contar aos netos o que foi. E quando os netos indagarem:
– Mas o que o senhor fazia, vovô? Como era seu trabalho?
Ele responderá:
– Ficava ali, vigiando.
– Olhava para a porta o tempo inteiro?
– Claro, era minha função.
– Nunca desviava os olhos?
– Às vezes, dava uma andadinha, voltava, sentava-me e vigiava.
– Nunca tentaram roubar o depósito?
– As pessoas não sabiam o que havia ali, era uma coisa tranquila.
Vislumbrei, ainda, este vigilante voltando para casa no fim do dia, lavando as mãos e sentando-se para jantar. A mulher serve a comida e pergunta, como todos os dias:
– Então, meu amor, como foi hoje?
– Bem.
– Muito trabalho? Muita agitação?
– Nenhuma.
– Muitos problemas? O que aconteceu de diferente?
– Nada, mulher! É um lugar sossegado. Foi promoção para mim, a quadra é deserta, às vezes vem um pessoal fumar crack, depois se vai. Ouço uns barulhinhos de vez em quando lá dentro, não vou ver. Não me autorizaram. Tudo o que tenho a fazer é ficar vigiando para que ninguém entre. Estou ali há anos e nunca apareceu ninguém querendo entrar. Fiquei curioso um dia quando soube que ele, o homem que mandou prender os livros, namorou a Maysa e a Sonia Braga. Nossa, eram lindas! Mulheraços! Que inveja. Ou foi mentira, os jornais inventaram isso? Se foi mentira, eu, se fosse ele, confirmava a mentira. Sonia Braga e Maysa, puxa. O cara era bom paca, não?
– Era…
Disse a mulher chochamente e serviu a sopa, era uma noite fria e faltava água nas torneiras, ela estava preocupada é como arrumar a cozinha depois. Então, de repente, uni as imagens, as notícias. Aquele depósito de livros é um santo sepulcro.
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Ignácio de Loyola Brandão é colunista do Estado de S.Paulo