Os cientistas bem que avisaram: as guerras futuras serão motivadas pela posse dos mananciais de água potável. O que era uma previsão feita nos anos 1990, no início dos alertas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), passou a se apresentar consistente no eixo mais rico e desenvolvido do país, que une São Paulo ao Rio de Janeiro. No meio dele, o vale do rio Paraíba do Sul, uma bacia estratégica para – literalmente – uma enxurrada de interesses, entre eles o abastecimento de 15 milhões de pessoas.
O que surgiu como um alarmismo para setores da imprensa – e acabou endossado por parte da própria comunidade científica, conhecidos como céticos – está acontecendo. O Sudeste brasileiro terá longos períodos de seca e grandes tempestades pontuais. Seu regime de chuvas esculhambou de vez. Embora, tacitamente, falar de clima seco no Brasil só seja permitido para os estados do Nordeste ou em eventuais El Niño e La Niña. O resto se encontra num horizonte ainda muito distante para ser visto e sentido. Coisa que só acontece nas vizinhanças.
O déficit hídrico de São Paulo já vem de tempos, a situação do Rio de Janeiro é ainda mais preocupante, pois depende diretamente das chuvas em solo paulista. No entanto, essa percepção é um tanto conturbada. Basta uma tempestade a inundar a capital paulista ou chuvas atrapalharem o dia de praia para o assunto sequer poder ser cogitado como pauta.
A lógica usada é a mais primária possível. Se chove em São Paulo, tanto o carioca como o paulista terá água na torneira. Mesmo que a ciência mostre que nem tudo que reluz é ouro, isso foi estabelecido pela perenidade do rio Paraíba do Sul. Embora a cada dia menos água exista em sua bacia em razão do desmatamento, expansão urbana e uma infinidade de outros fatores.
A situação seguiu assim até que o inevitável deu as caras. Um bloqueio atmosférico impediu as chuvas em terras paulistas durante o verão. E logo se mostrou toda a fragilidade da falta de políticas e investimentos em saneamento e na preservação da água. Sem dizer que a megalópole está assentada sobre 1,5 mil quilômetros de rios e córregos e ainda assassinou dois de seus principais rios e vários reservatórios. Todos mortos, aniquilados para o consumo – seja ele qual for.
A grande imprensa, com seus representantes estacionados exatamente onde a bomba prometia explodir, se fingiu de indignada e preferiu dar contornos ao caso dentro do contexto político sucessório. E mais uma vez mostra que só sabe ser estilingue, nunca vidraça. A corresponsabilidade da imprensa por falhar em informar e formar a opinião pública sempre é varrida para baixo do tapete. Novamente essa entidade cada vez mais bipolar escolheu, comodamente, qual a máscara que usaria para enfrentar o caso.
A hora da onça
As falhas e falta de políticas públicas para mitigar os problemas das mudanças climáticas passam ao largo das redações, como o firmamento pregado pelos cientistas do apocalipse. A onda de calor, que desde novembro passado se instalou sobre grande parte de São Paulo e impediu a formação de chuvas na Zona de Convergência do Atlântico Sul, agravou a demanda por água. E isso sequer foi incluído no contexto da estiagem. Sobrou muito de política e quase nada de ciência.
A linha que separa o cômico do dramático se rompeu totalmente quando um recentíssimo estudo da Universidade de Campinas (Unicamp), desenvolvido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), mostrou a irresponsabilidade das cidades brasileiras ao ignorarem as recomendações feitas pelo IPCC .
Quando o governo paulista avisou que para matar a sede de água e os vícios paulistanos – que continuam a lavar calçadas e carros com água própria para consumo – teria que ir buscar o líquido na bacia do rio Paraíba do Sul, de administração federal e responsável pelo abastecimento da região metropolitana do Rio de Janeiro, o urro ecoou pelas encostas das serras da Mantiqueira e do Mar. Na hora de a onça beber água o que encontrou foi o lago seco.
O cenário se contaminou de vez. A panaceia foi culpar, de maneira linear e com pouco aprofundamento na questão, o que de pior o Brasil tem conseguido produzir nos últimos tempos: políticos. Até a deusa grega pediu licença para se retirar. A entidade mitológica não está exatamente acostumada a palcos circenses e futebolísticos superfaturados. E a conclusão é que o tal volume morto da represa do Jaguarí foi o atoleiro ideal encontrado para a imprensa, políticos e militantes se fartarem.
Passos no corredor
Enquanto fervilhavam acusações políticas, ameaças de retaliação e jogos de cena, que só faziam subir ainda mais a temperatura em suas desagradáveis ilhas de calor, organizações sociais procuraram dar a seriedade necessária ao assunto. Tanto em São Paulo como no Rio e em cidades do Vale do Paraíba paulista, surgiram diversos eventos entre empresários, cientistas e entidades ambientais focados em analisar e encontrar alternativas para solucionar, principalmente, as questões sobre o futuro da água na região.
Um dos mais produtivos encontros ocorreu no final do maio. A ação foi coordenada pela organização social Corredor Ecológico do Vale do Paraíba, que congrega entidades de relevância no meio empresarial, socioambiental e institutos de pesquisas. Entre os associados estão a empresa Fibria, o Instituto Ethos, SOS Mata Atlântica, Instituto Oikos, AMCE Negócios Sustentáveis, além de centros de pesquisa como o INPE e ITA e também o Comitê de Bacias.
A entidade produzirá uma agenda positiva com propostas a serem entregues aos candidatos que disputam os cargos no executivo federal e estadual, e também que pleiteiam o legislativo dessas esferas. Além disto, o Corredor Ecológico do Vale do Paraíba manterá atividades que visam a recuperar o ambiente natural da bacia do Paraíba do Sul. E com isso provar que há possibilidades além do sapateio na lama para caminhadas em terra firme e consistente.
Entretanto, para que isso ocorra, a imprensa precisa estar desperta, atenta para inúmeras outras possibilidades de se abordar um tema de alto grau de complexidade. Além de ser premente também corrigir sua miopia com as lentes da sabedoria e entender que se enxergar mais longe, de forma abrangente, conseguirá cumprir sua função social num momento de que a própria sociedade clama pela qualidade da informação.
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Júlio Ottoboni é jornalista científico