Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os ossos do ofício

O ofício de observador da mídia – exercido, quase que exclusivamente, através de blogs, sites e portais na internet – traz importantes consequências, nem sempre prazerosas.

A primeira e mais óbvia delas é a impossibilidade de se ter um artigo, um livro, uma pesquisa conhecida, tornada pública. A crítica da mídia não aparece na grande mídia comercial brasileira. A única exceção é aquela “feita de dentro” pelos raríssimos profissionais que ocupam a posição designada pela estranha palavra sueca “ombudsman”. A grande mídia comercial ainda é a virtual detentora do monopólio de “tornar as coisas públicas”. Por isso, o trabalho do observador crítico da mídia passa despercebido pela imensa maioria da população, embora tenha conquistado algum espaço na mídia pública. Um amigo brincou que nem mesmo meu obituário seria publicado em determinado jornal. Claro, nunca poderei saber se ele tem razão. De qualquer maneira, isso, por certo, questiona a validade do próprio trabalho do observador crítico. Para quem ele é dirigido?

Para observadores que têm origem na academia e no campo de estudos das relações entre mídia e política, o mais comum é a desqualificação preconceituosa in limine do tipo “virou jornalista, só escreve opinião, não faz ciência”. Sempre tive dificuldade em estabelecer os limites entre o discurso da ciência e o da não ciência nas chamadas “ciências humanas”, portanto, essa é uma consequência com a qual convivo desde os longínquos tempos em que ainda estava na ativa como professor. De qualquer maneira, o problema surge quando o preconceito passa a ser utilizado como justificativa para excluir trabalhos produzidos por observadores críticos da mídia de referências bibliográficas de textos, disciplinas e programas.

Outra consequência é a acusação de partidarismo, de que o observador critica a grande mídia porque ela faz “oposição política ao governo”. Claro, essa seria em si mesma uma boa razão para se fazer a crítica – a mídia “substituir” os partidos políticos. Todavia, o que está implícito é que o observador colocaria acima da isenção com que deve conduzir seu trabalho uma opção partidária. Algumas vezes já me vi obrigado a explicitar minha condição de nunca ter sido filiado a partido politico, embora, por óbvio, tenha posições políticas e seja um militante da causa da democratização da comunicação – o que, aliás, nunca escondi.

Recentemente, fiz longa exposição em ambiente universitário em que argumentei que a legislação da radiodifusão historicamente sempre atendeu aos interesses dos empresários do setor e permanecia garantindo privilégios assimétricos aos concessionários desse serviço público. Acrescentei que essas eram as principais razões da ferrenha oposição dos empresários à regulação do setor. Depois de minha fala, uma estudante de pós-graduação em Comunicação perguntou com certa impaciência: “Será que você não consegue ver nada de bom na mídia, só é capaz de criticá-la?”. Respondi que esse era o meu ofício, mas que, de qualquer maneira, comparativamente ao funcionamento da mídia comercial em outras democracias, sim, tinha muito mais críticas do que elogios à mídia brasileira.

E a “observação” da mídia alternativa?

Dia desses, ouvi de um interlocutor inflamado que o observador crítico da mídia só consegue ver problemas na mídia e não “enxerga” sua (dela) enorme contribuição, além de não ver outros aspectos relevantes da realidade que deveriam ser igualmente criticados. Pior ainda, vê problemas na grande mídia, mas ignora os da chamada “mídia alternativa”, que pratica o mesmo tipo de jornalismo “com sinal trocado”.

Contra-argumentei que, por óbvio, a mídia não funciona num vazio, mas faz parte de uma realidade maior na qual está inserida. Diferentes formas de organizar o sistema de mídia, por exemplo, produzem resultados diferentes na sua atuação e na democratização do acesso ao debate público. Por outro lado, um observador sério da mídia, certamente não se sente autorizado a escrever um artigo específico, por exemplo, sobre crise econômica, meio ambiente ou corrupção, a não ser para apontar suas interfaces com a mídia.

Quanto a não ter a “mídia alternativa” como objeto prioritário de observação crítica, há de se considerar, primeiro, uma questão de escala de poder. O que representa, em termos de “audiência” e influência, um blog individual diante de um telejornal diário, transmitido em rede para todo o país? Segundo, existem blogs e sites que tratam dos mais diferentes temas e defendem as mais diferentes posições. Na verdade, o diminuto espaço público construído pela “mídia alternativa” é relativamente plural e diverso quando comparado com o espaço público dominante criado pela grande mídia, onde prevalece um discurso homogêneo, quase único.

Só no longo prazo

As consequências de curto prazo da observação da mídia são sentidas diretamente pelo próprio observador e não pela mídia criticada. São os ossos do ofício.

É necessário acrescentar que essas consequências não são também sentidas por aqueles responsáveis – diretos e/ou indiretos – pela formulação das políticas públicas do setor.

No longo prazo, todavia, junto ao esforço de outros muitos, fica a esperança de que aumente, dia a dia, a consciência sobre a importância da observação crítica permanente da mídia para o processo de sua democratização.

A ver.

******

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A lei argentina, o relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu Abramo/Maurício Grabois, 2014; entre outros livros