Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Protestos mudam a visão da imprensa estrangeira

O episódio da animação Os Simpsons chamado de “Feitiço de Lisa”, exibido nos Estados Unidos pela primeira vez em 31 de março de 2002, é objeto de estudos acerca de como os estrangeiros, em especial os norte-americanos, veem o Brasil e sua população. Com macacos e ratos passeando nas ruas do Rio de Janeiro, “Feitiço de Lisa” corroborou estereótipos comuns relacionados ao país, como mulheres seminuas na TV e nas praias, gente festiva que vive a dançar e não para de jogar futebol.

A Copa do Mundo deste ano mudou essa imagem graças aos protestos que setores da sociedade têm feito contra a competição, em favor de mais investimentos governamentais em questões básicas de sobrevivência (casas, saneamento, escolas, hospitais…), contra bilhões de reais gastos em obras.

Essa transformação ocorreu porque a primeira visão, precipitada, vinha de um ponto de vista restrito à observação, uma análise de longe baseada no “alguém me disse”, “ouvi falar”. A nova visão é apresentada pelo convívio, pela experiência, pois jornalistas estrangeiros estão no Brasil e, logo, podem relatar fielmente o que se passa no rotulado país do futebol.

A diferença entre uma tese e outra é apresentada com clareza pelo filósofo Charles Peirce (1839-1914). Para Peirce, por mais que a observação permita uma constituição de qualquer ideia, somente a experiência dá ao indivíduo intimidade suficiente para tecer uma argumentação mais verídica.

“Na Copa vai ter luta”

Na semana de abertura da Copa no Brasil, pôde ser observada na imprensa estrangeira essa mudança de visão. Na segunda-feira (9/6), o jornal norte-americano USA Today publicou uma reportagem com o título “Some brazilians choose protests over World Cup“ (Alguns brasileiros escolhem protestos ao invés da Copa do Mundo). O repórter Alan Gomez ouviu cariocas e paulistanos que não dão atenção ao torneio de futebol e mostram indignação com a quantidade de dinheiro despejado em construções e reformas de estádios. Um dos personagens ouvidos comparou o governo brasileiro com o Império Romano. “Gastamos tudo com vinho e esportes”, disse.

Gomez reforça que as manifestações são uma forma eficaz de chamar a atenção dos mais de 18 mil jornalistas estrangeiros que estão no Brasil para cobrir a Copa do Mundo. O resultado, até o momento, tem sido satisfatório. A reportagem lista os inúmeros protestos ocorridos em todo o Brasil dias antes da estreia da seleção na competição e deixa claro um sentimento novo para os gringos: o povo brasileiro é mais engajado do que se pensava, nem tanto complacente.

O jornal inglês The Guardian, no dia seguinte ao USA Today, foi mais incisivo e trouxe o artigo “Why you should root for the World Cup protesters“ (Por que você deve torcer para os que protestam contra a Copa do Mundo). Jules Boykoff ataca ferozmente a Fifa, organização maior do futebol mundial, enfatizando que ela ganhará bilhões com a Copa do Mundo no Brasil – segundo ele, o equivalente a mais de R$ 12 bilhões – e nada disso é revertido em alguma forma para a população brasileira mais necessitada, em destaque as que foram afetadas diretamente com o torneio. Boycoff também cita o aumento de manifestações com a aproximação da Copa e defende os participantes dizendo que eles não devem ser tratados como mimados, muito menos com violência “como sugeriu Ronaldo, estrela do futebol brasileiro”, afirma Boycoff, que abraça um coro comum ouvido nas ruas: “Na Copa vai ter luta”.

Uma nova percepção

Um dia antes do primeiro jogo da seleção (quarta-feira, 11/6), o El País, jornal mais importante da Espanha, trouxe o artigo “Que empiece el espetáculo (o no)“ (Que comece o espetáculo, ou não), escrito por Antonio Jiménez Barca, direto de São Paulo. Barca traça um paralelo entre os protestos no Brasil com os que vêm ocorrendo em seu país natal e na vizinha França. Ele cita uma pesquisa do jornal carioca O Globo que aponta que a maioria dos ouvidos está convencida que a Copa trará mais prejuízos do que benefícios ao Brasil, e pergunta: “Como fazer uma festa assim?”.

Barca fala do que viu em São Paulo com a greve de metroviários que paralisou o principal meio de transporte dos paulistanos por cinco dias: centenas de pessoas se aglomerando para pegar ônibus e poderem chegar ao trabalho ou em seus respectivos destinos. Ele também está na torcida de que os protestos tragam algum resultado de melhoria nos serviços públicos prestados a população.

Os primeiros dias da Copa confirmaram um estereótipo: o Brasil é realmente um país festivo. Basta olhar como os estádios estão cheios e a boa recepção dada a todos os visitantes estrangeiros.

Contudo, a Copa está servindo para criar uma nova percepção do povo brasileiro, longe da passividade tradicionalmente pregada. Os milhares de jornalistas que vieram ao Brasil falar sobre um campeonato de futebol perceberam que aqui também há uma população engajada e combatente, não conformista, que entende bem seu poder de persuasão e transformação.

Como a que neste momento se desenvolve.

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João da Paz é jornalista